Rousseau, no seu Discurso sobre a Desigualdade, se refere a uma história que se tornou referência na teoria dos jogos.
Dois homens decidem caçar. Há duas opções: caçar cervos ou caçar lebres. A caça ao cervo exige cooperação entre os dois, mas, em compensação, apresenta a possibilidade de uma grande recompensa. Já a caça à lebre pode ser feita individualmente, porém sua taxa de recompensa é baixa, pois a lebre é animal bem menor.
O que é melhor, pressupondo que ambos não têm certeza sobre o que o outro vai fazer?
Um caçador pode escolher caçar cervos, de olho na grande recompensa. Entretanto, se o outro caçador decidir caçar lebres, ele ficará sem nada, uma vez que a caça ao cervo exige cooperação. Já se a escolha do primeiro caçador for caçar lebres, a recompensa será bem menor, mas ele poderá obtê-la independentemente do que faça o outro caçador.
Assim, esse jogo tem dois “pontos Nash” (referência a John Nash, o grande matemático recentemente falecido) de equilíbrio. Se o pressuposto for o de que o outro caçador caçará cervos, é melhor caçar cervos também, já que a recompensa será bem maior que a de caçar lebres.
Contudo, ao se considerar que o outro caçador caçará lebres, será racional caçar lebres também, evitando o risco de ficar sem nada. No primeiro caso, o ponto de equilíbrio entre os dois se alcança pela maximização da recompensa para ambos. No segundo caso, o ponto de equilíbrio se dá pela minimização dos riscos de cada um.
Na eventualidade de escolhas distintas (o primeiro caçador caça cervos e o segundo lebres, ou vice-versa) não há ponto de equilíbrio, já que um terá uma pequena recompensa – a lebre- e o outro ficará sem nada.
Esse jogo pode ser útil na análise das perspectivas do ajuste fiscal proposto.
Num ambiente de tensão política e de incertezas econômicas, a tendência natural é de que agentes econômicos e os protagonistas políticos reduzam seus riscos de forma isolada.
No campo econômico, investidores cancelam ou postergam investimentos, bancos relutam em emprestar, ou o fazem a taxas maiores e com condicionalidades mais rígidas, e consumidores reduzem seus gastos.
No campo político, a cooperação se esfarela, as alianças se esgarçam, as unidades partidárias fraturam e a grande e única prioridade passa a ser a sobrevivência ou a maximização de vantagens individuais com o horizonte restrito das próximas eleições.
É o que acontece hoje no Brasil. A maioria saiu a caçar sua lebre, de olho na redução de seu risco individual, no horizonte do curto prazo.
Não o governo. O governo saiu a caçar cervo.
O governo podia ter optado por medidas graduais e pontuais. Podia ter evitado tomar decisões difíceis que têm o potencial de erodir sua base social de sustentação política. O governo tinha a opção de reduzir seus riscos e caçar lebres de curto prazo.
Preferiu, no entanto, o risco da caça ao cervo, pensando no País, com o horizonte de longo prazo.
E esse risco é alto.
Não é alto tanto por causa da economia. Na realidade, o Brasil de hoje está em condições econômicas bem melhores das que tínhamos, por exemplo, ao final do ciclo paleoliberal, em 2002. Nossa situação é também incomparavelmente melhor que a dos países europeus submetidos às exigências draconianas da Troika.
Há, é claro, a pior crise mundial desde 1929, que continua a impor restrições à recuperação de todos os países. Mas o risco maior não vem daí. O risco maior advém do clima político interno deteriorado.
Setores da base governista caçam a lebre dos seus interesses menores e fisiológicos e, ao mesmo tempo, evitam associar-se aos riscos e aos desgastes inerentes à caça ao cervo. Já a oposição caça a lebre do terceiro turno ou da “sangria” da presidenta. Seu sucesso depende, assim, do fracasso da caça ao cervo.
Isso cria um problemão.
Ao contrário do que se possa pensar, o objetivo maior dos ajustes econômicos não se refere ao simples equilíbrio das contas públicas. Não basta melhorar os números. Não basta transformar números negativos em números positivos.
Na realidade, o objetivo maior dos ajustes, e o ponto decisivo para seu sucesso, é a transformação das expectativas pessimistas em expectativas otimistas. É a mutação do equilíbrio da redução do risco para o equilíbrio da maximização da recompensa.
Para que um investidor decida investir, é preciso que ele acredite que outros investidores também farão a mesma coisa. Para que um banco decida emprestar, é necessário que ele acredite que os outros bancos também emprestarão.
Como no jogo descrito, os agentes assumirão riscos e caçarão cervos quando acreditarem que os outros também o farão.
Pois bem, a história dos ajustes mostra que essa reversão das expectativas ocorre com muito mais facilidade em ambientes políticos pactuados e cooperativos.
Isso não significa comportamento acrítico. Ao contrário, significa capacidade de, num debate transparente e democrático, encontrar pontos de equilíbrio político que induzam à reversão das expectativas econômicas.
Tal situação possibilita a realização de ajustes transparentes, equilibrados e flexíveis, com reversão mais rápida das expectativas econômicas e com sacrifício bem menor da população. Em outras palavras, as forças políticas envolvidas no ajuste precisam demonstrar grande capacidade de negociação e agregação.
Mas é preciso que as forças políticas envolvidas tenham também a capacidade de projetar futuro.
Ajuste, para as forças progressistas, é somente meio, como ficou explícito na famosa Carta ao Povo Brasileiro, de Lula, em 2002. Meio para alcançar a finalidade maior do desenvolvimento com distribuição de renda, extinção da pobreza e redução das desigualdades. Instrumento para caçar o cervo do país desenvolvido para todos. Só assim o ajuste torna-se suportável e justificado.
Essa capacidade de projetar o futuro, o pós-ajuste, só poderá vir da união de todas as forças que estiveram ou estão realmente empenhadas na construção de um novo país. O Brasil de todos, por todos e para todos. O Brasil que não aceita voltar atrás.
A oposição mais conservadora não tem capacidade de projetar futuro. Ela caça a sua lebre raquítica olhando pelo retrovisor. Só tem a oferecer o passado do fracassado paleoliberalismo. Nos casos mais extremos, oferece também os fantasmas da ditadura, do ódio e da intolerância. Cozinha ressentimentos nas estridentes panelas do culto à exclusão. Se voltar ao poder, entronizará o ajuste como finalidade e modelo.
A aposta que o governo, o PT e demais forças progressistas estão fazendo é alta. Os riscos, neste ambiente político, são significativos e geram, em muitos casos, insegurança e perplexidade. Mas é uma aposta que vale a pena.
Se bem conduzido, no marco de uma estratégia clara para a retomada do crescimento, a grande recompensa do reequilíbrio das contas públicas deverá ser um novo e sólido ciclo de desenvolvimento.
Assim, é necessário resistir à fácil tentação de caçar lebres e arriscar caçar cervos.
Só chegamos até aqui com muita ousadia. E a maior parte da população, que saiu recentemente da tirania de um passado de miséria, fome e exclusão, quer mais, muito mais. O povo do Brasil também está disposto a apostar alto em seu próprio futuro. Ele não se contenta mais com as lebres magras do passado.
O novo Brasil caça cervos.
Crédito da foto da página inicial: FNF/Creative Commons
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