“Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades… Mas se você achar Que eu tô derrotado Saiba que ainda estão rolando os dados Porque o tempo, o tempo não para”
Cazuza
O Brasil não é para principiantes. A experiência, artifício usual daqueles que buscam compreender o passado para desvendar o futuro, é fundamental para entender as razões pela qual a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. A questão é que, em um país intelectualmente pobre e sem memória, somos quase todos principiantes, acreditando piamente na existência de museus de grandes novidades.
Pois bem, nunca é demais lembrar que não há nada de novo no front. Após alguns anos de experiência democrática/popular, marcados por um ciclo de inclusão social e maior acesso a direitos fundamentais, setores da sociedade brasileira flertam com o golpe.
Não aceitando os resultados eleitorais, buscam impedir o governo de exercer seu mandato, acusando-o de corrupção e incompetência. Encontram apoio velado em setores do Estado, particularmente aqueles formados por pessoas oriundas de sua própria classe social, e nos grandes capitais internacionais, ávidos por criar um cenário de fragilidade que os permita abocanhar o mercado e as riquezas nacionais.
Quem poderia afirmar sem sombra de dúvidas que o parágrafo acima não se refere a 1954? O Lacerdismo e o Udenismo possuem em si o mesmo DNA do “Vai pra Rua”, “Movimento Brasil Livre” etc. A utilização das expressões “mar de lama”, “corrupção” e “renuncie” é tão comum com Dilma quanto foi com Vargas.
A caça desmesurada, superando os limites da legalidade e do bom senso, contra o líder popular de plantão e sua família, também são marcas comuns aos dois períodos. Por fim, a decisão estratégica acerca do futuro da propriedade do petróleo nacional está no coração da escaramuça de 1954 e de 2016.
Claro, a história nunca se repete exatamente igual. Ao invés das forças armadas fazerem o papel de golpistas, constituindo a chamada “República do Galeão” e cometendo ilegalidades nas investigações (inclusive as chamadas conduções coercitivas e o vazamento de informações falsas ou parciais), em 2016 esse papel está reservado ao judiciário, que constitui a “República de Curitiba”, se valendo de métodos muito similares aos utilizados pelos milicos.
Em ambos os casos, são instituições compostas pelas parcelas mais distintivas da elite nacional, vistas como acima da política (apesar de embrenhadas até o último fio de cabelo nas articulações político-partidárias) e com evidentes alianças espúrias com setores da imprensa nacional.
Compreender o momento atual do Brasil, portanto, exige um entendimento mais profundo da história do país e da “psique” da elite brasileira. Acossada pelo avanço social dos “de baixo”, prisioneira de uma visão vira-lata de seu país, herdeira de preconceitos de cor e classe, a elite brasileira sonha emular os padrões de vida e de consumo americanos, sem, contudo, abrir mão de seus privilégios de classe ausentes em países civilizados, como os serviçais abundantes e baratos.
Mais que isso, alimentada por uma imprensa monopolizada e possuidora de um capital intelectual praticamente inexistente, as elites nacionais atribuem o fracasso do país ao próprio povo, apontando como doenças tropicais uma suposta “leniência” com o trabalho e a incapacidade de o povo escolher democraticamente seus líderes.
O traço mais marcante dessa camada social, no entanto, é sua brutalidade. Não é novidade que, ao longo da história, as elites e as classes médias são as que mais entusiasticamente aderiram aos regimes de exceção, validando a violência contra aqueles que consideram seus inimigos.
No caso brasileiro, a evidência mais clara desta adesão ocorreu em 1964, com manifestações de grande volume contra o governo supostamente corrupto e comunista de João Goulart. Ao aderir ao militarismo, justificando e aceitando a tortura e assassinatos, a elite brasileira apenas mostrou sua face protofascista, que insiste em permanecer inalterada quase 50 anos depois.
Desta feita, é plenamente compreensível o crescimento de figuras como Jair Bolsonaro e a defesa de atitudes que violem o Estado de Direito, desde que seja para atacar os adversários de classe.
Por fim, cabe lembrar que uma tragédia nunca vem sozinha. O desmantelamento do Estado de Direito e a criminalização de governos populares não é exclusividade brasileira hoje, assim como não o foi em 1964. A crise econômica e a radicalização política, que produziram regimes de exceção em quase toda a América Latina nas décadas de 1960/70, também é a marca atual de países como Chile, Argentina, Colômbia, México, Panamá, Bolívia, dentre outros.
A reversão dos curtos ciclos de inclusão social e do aumento da participação popular parecem ser condições mínimas exigidas pelas forças reacionárias, nacionais e internacionais, para devolver o país a uma situação mínima de “normalidade”, que na prática representa o retorno do equilíbrio desigual anterior.
O que resta fazer diante de tamanha e tão bem articulada ofensiva? Talvez a história novamente venha em nosso auxílio. Nos dois momentos mais críticos da história moderna brasileira, dois líderes políticos populares tomaram caminhos opostos: Enquanto Vargas enfrentou os golpistas oferecendo sua própria vida, Jango optou pelo refúgio em terras estrangeiras, evitando o conflito eminente.
Como resultado, Vargas garantiu mais dez anos de governos progressistas e ordem democrática (contando com a reação popular ao seu ato de resistência), enquanto Jango deixou o país ao sabor da violência e do arbítrio por quase 25 anos. Parece, portanto, que resistir e lutar contra as forças da insanidade e do conservadorismo nacional é o que resta ao campo popular/democrático, sob a pena de amargar décadas de clausura e perseguição.
O passado pode ajudar a desvendar as trilhas do futuro, mas apenas as ações o constroem na prática. Os dados ainda estão rolando e o tempo não para… ao contrário, ele urge!
Crédito da foto da página inicial: UJS
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