A recente criação de dois organismos financeiros multilaterais pelos BRICs – um fundo de contingência e um banco de desenvolvimento – tem suscitado fartos comentários na mídia especializada. Mais do que o volume de recursos mobilizados, bastante expressivos, de US$ 100 bilhões para cada uma das instituições, o destaque tem sido para o seu caráter singular.
Este último residiria tanto na escala da iniciativa quanto na participação exclusiva de países em desenvolvimento, com a exclusão inicial dos países do G-7 e de outros países desenvolvidos membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Diante desse fato, de relevância histórica indiscutível, algumas perguntas se impõem: qual o significado desta iniciativa perante a atual ordem financeira internacional originada em Bretton Woods (cidade norte-americana que sediou os históricos encontros de 1944)? Como a governança dessas instituições poderá ajudar os países membros, e evitar que se convertam em instrumento de hegemonia dos países mais fortes dentro do bloco?
A atual ordem financeira internacional, na sua dimensão pública, tem as suas origens no acordo de Bretton Woods, e de seus desdobramentos posteriores, concentrados nos anos 1950 e 1960. A face mais conhecida desse acordo são as instituições que operam em escala internacional: o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional).
Todavia há um conjunto de outros atores operando em escala regional ou mesmo setorial que constituem parte relevante do mesmo. São exemplos do primeiro grupo o Banco Asiático, o Banco Africano, o Banco Interamericano, e o maior deles, o Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, no qual os países europeus têm um papel protagônico.
No âmbito setorial, destaca-se a presença de uma miríade de fundos de investimentos dedicados a um objetivo particular, patrocinados por países ou grupos de países, em geral do G-7 ou da OCDE, muitas vezes geridos pelas mesmas instituições financeiras citadas acima, outras vezes administrados de forma independente.
Os exemplos mais significativos desse tipo de instituição são os chamados fundos de mitigação das mudanças climáticas, cujos grandes doadores são os países da OCDE e a administração está a cargo do Banco Mundial.
Há exceções a esse quadro, com alguns fundos de contingência ou bancos de desenvolvimento de propriedade exclusiva de países periféricos, mas o seu peso é pequeno, ainda que não inexpressivo.
Há distintas razões pelas quais essas instituições financeiras internacionais públicas perderam relevância nas últimas décadas.
A primeira delas foi o processo de globalização financeira e, portanto, de liberalização dos fluxos financeiros entre países, que, ao ampliar em grau significativo essas transações, tornaram os recursos públicos menos importantes vis à vis os privados, tão menos relevantes quanto maiores ou mais desenvolvidos os países.
Um exemplo emblemático disto foi o reconhecimento explícito do FMI durante a crise financeira europeia de que havia perdido escala para lidar com os desequilíbrios oriundos da região.
O mesmo desbalanço se pode constatar quando se compara o volume de recursos tomados nos mercados de capitais privados e nos bancos públicos por países de renda média. Isto não significa, contudo, que para estes últimos as fontes públicas tenham se tornado desprezíveis ou substituíveis integralmente por fontes privadas.
Quando se consideram prazos e custos, as primeiras são significativamente melhores do que as privadas e muito mais adequadas para financiar projetos de longo prazo. No que tange aos países pobres, elas constituem a única alternativa de financiamento externo.
Estas instituições públicas também se individualizam pela sua governança e agenda de desenvolvimento. No que tange à primeira, em geral os países desenvolvidos, habitualmente não prestatários, concentram o poder de decisão, enquanto os países periféricos, usualmente os prestatários, têm pequeno poder de voto, ou pelo menos, voto minoritário.
Nesse âmbito, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, é uma exceção por conta da maioria dos votos do grupo latino-americano e caribenho, embora sujeito a vetos do maior acionista, os EUA, em questões estratégicas.
Mal-estar entre os menos desenvolvidos
A combinação do controle exercido pelos países desenvolvidos nessas instituições com uma agenda própria de desenvolvimento tem produzido um crescente mal estar por parte dos países menos desenvolvidos, que se sentem permanentemente excluídos das definições das prioridades dessa agenda nos seus vários níveis.
Um exemplo do desacordo apontado acima foi a demanda de um conjunto de países, dentre os quais Brasil e China, para mudar a governança das duas maiores instituições multilaterais, o FMI e o Banco Mundial, sobretudo da primeira, ampliando seus recursos, mas também aumentando o poder de voto dos emergentes, para tornar a sua distribuição mais representativa do atual peso das economias no âmbito global.
A proposta contava com a simpatia da administração Obama, mas foi derrotada no congresso americano.
Outras iniciativas dos países emergentes nas instituições regionais, no sentido de ampliar o seu capital e capacidade de empréstimo, têm sido, com raras exceções, obstaculizadas pelos países do G-7, com alegações que vão desde a falta de recursos fiscais ao desinteresse puro e simples.
Somam-se aos problemas de governança nestas instituições aqueles gerados pela definição da agenda ou prioridades. Estas últimas são em grande medida escolhidas a partir da visão dos países mais ricos e têm no passado recente privilegiado temas como mudança climática, questões de gênero, minorias, com menor ênfase em aspectos como infraestrutura e desenvolvimento tecnológico.
No âmbito das questões sociais, a ênfase é na eliminação da pobreza, via estímulo ao empreendedorismo, ante um tratamento mais abrangente de redução das desigualdades. As políticas sociais básicas como saúde e educação trazem a marca da focalização ante a universalização.
A criação das instituições financeiras dos BRICs preenche um vazio importante na arquitetura financeira internacional, gerado em parte pelas crescentes dificuldades dos EUA e do G-7 em fazerem valer a sua hegemonia, ao não proporem para estas instituições um papel e uma governança com as quais países emergentes se sintam identificados.
Algumas características dessas novas entidades corrigem estas deficiências. Por exemplo, no fundo de contingência o nível de condicionalidade para saque de recursos existe, mas é inferior ao do FMI. Por sua vez, decisões não previstas serão deliberadas de acordo com a maioria dos votos, sem conceder poder de veto a nenhum país.
No banco de desenvolvimento, além de uma agenda mais próxima aos anseios dos países, a governança é bastante peculiar, vale dizer, as decisões serão tomadas por consenso. O novo banco também abre espaço para a participação de outros emergentes e até mesmo de países desenvolvidos, neste último caso, com um limite de 20% do capital.
Por fim, tem-se argumentado que estas iniciativas, como outras em curso na Ásia – o acordo de Xiang Mai e o novo banco de desenvolvimento asiático – seriam instrumentos da hegemonia chinesa e, portanto, não difeririam da atual ordem financeira internacional comandada pelos EUA.
Contudo, o essencial é atentar para o funcionamento distinto dessas entidades e entender que ter opções relativamente à atual configuração da arquitetura financeira internacional pode ser um caminho para a construção de uma ordem alternativa, mais favorável aos países em desenvolvimento, induzindo inclusive modificações na primeira.
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