*Esse texto é fragmento de artigo publicado no portal Outras Palavras
Os principais arquitetos intelectuais das políticas que destroem países, Alesina e Ardagna[i] já foram criticados técnica e politicamente, sendo que o problema de causalidade reversa já foi largamente apontado por pesquisadores[ii]. Porém, mais do que um erro estatístico não tratado, surpreendentemente, o próprio conceito de austeridade é definido pelos seus defensores se utilizando dessa confusão causal[iii]. Ou seja, o termo é significado pelos resultados observados e não pelo seu conteúdo propositivo.
Definem austeridade como uma redução de déficits e estabilização da dívida, devido a alguma redução de gastos ou aumento de impostos. Se as políticas que conhecemos bem, como reforma da previdência, entrega de patrimônio público, cortes em serviços públicos, direitos e assistência social, falharem em entregar suas próprias promessas de melhoria fiscal, como nomear o que ocorreu?
Ainda, em seu último livro[iv], os criadores da ideia de contração fiscal expansionista dizem ser difícil monitorar e registrar nos modelos matemáticos a implementação e continuidade das medidas de corte de gastos ou aumento de impostos, bem como, já foram contestados por incluírem em seus primeiros estudos países que estavam em retomada de crescimento antes da aplicação de medidas de austeridade, e outros que, paralelamente a alguma medida de austeridade, também estimularam a economia[v].
Parece óbvio que não é nada científico definir um conceito pelo que se espera de seus resultados (uma definição ex post), e não pelo que se propõe ex ante. Tirando o foco dos indicadores fiscais e observando os impactos sociais, a aplicação desse não-conceito apresenta resultados inequívocos, tanto em países centrais quanto periféricos, rendendo críticas inclusive do insuspeito FMI[vi]. Assim, tanto pelas propostas quanto consequências, é possível definir austeridade como uma limitação estrutural da atuação contracíclica e desenvolvimentista do Estado, e a diminuição do Estado de Bem-Estar Social, por meio de regras fiscais, revisão de direitos adquiridos, e privatização de fundos públicos, visando favorecer o capital no conflito distributivo.
No Brasil, onde parte desses objetivos estruturais já foram cumpridos, os defensores da austeridade encontram agora dificuldades em cumprir suas próprias regras fiscais impraticáveis[vii]. Começam então a falar timidamente sobre reformas tributárias, argumentando que aumento de receitas e justiça social sempre couberam no conceito de austeridade. Assim, após a contração fiscal expansionista, cria-se um novo oximoro: a austeridade progressista[viii].
Parece que a aprovação do Teto de Gastos aconteceu há tempo suficiente para terem esquecido que sua principal linha de defesa estava no argumento de que nossa carga tributária já é muito alta e seu aumento se dá em equilíbrio com o PIB, de modo que o problema estaria nos gastos descontrolados. A limitação dos gastos supostamente forçaria então os grupos de poder do Congresso a serem racionais e voluntariamente reverem gargalos e salários altos, em vez de cortar em políticas públicas, serviços e assistência social[ix].
Tal justificativa coloca a regra fiscal tupiniquim em pleno acordo com as premissas de Alesina e Ardagna, que diagnosticam como problema inicial o crescimento constante de gastos que o Estado de Bem-Estar Social implica. De acordo com essa narrativa, o déficit sinaliza para empresas e pessoas que haverá aumento de impostos no futuro, de modo que elas deixam de gastar e de investir de antemão. O controle do déficit sinalizaria o oposto e diminuiria também a percepção de risco de default do governo, sendo que, pelo canal das expectativas e da diminuição da taxa de juros, haveria efeito expansionista.
Se a teoria está embasada na ideia de que agentes privados consomem e investem justamente por uma percepção de que impostos não vão aumentar, não faz sentido agora dizerem que sempre estiveram do lado da reforma tributária. Outras coisas não fazem sentido dentro desse raciocínio, como o fato de que agora estamos com um nível de dívida/PIB maior do que quando isso tudo começou, e a taxa de juros não para de cair.
Parece difícil acreditar que as pessoas procedam uma espécie de análise de crédito do governo para decidir acerca de seu consumo e investimento individuais. Assim como também não há lógica em dizer que as medidas de austeridade possibilitaram a queda dos juros, por afastar uma suposta ameaça de insolvência de um governo que emite sua própria moeda.
Alternativamente, a teoria keynesiana e a Teoria da Moeda Moderna argumentam precisamente o inverso. O déficit do governo atua diretamente injetando dinheiro na economia em momentos recessivos, estimulando a demanda[x], e o aumento da base monetária força a taxa de juros para baixo. Ademais, o Banco Central tem poder ilimitado para interferir no mercado de títulos e perseguir a taxa de juros desejada[xi].
Por fim, o último trabalho de Alesina[xii] reforça a sua defesa inicial de ajustes fiscais por meio de corte de gastos e não de aumento de impostos. Entretanto, retifica a conclusão prescritiva que serviu de base ao esfacelamento de direitos no mundo todo. Como se fosse mera curiosidade intelectual descolada da realidade, avisa a quem interessar possa: contrações fiscais são de fato contracionistas. Portanto, os resultados da austeridade já sabemos, resta-nos defini-la com o rigor que um conceito tão difundido deve ter.
Coisas como liberdade, igualdade e até democracia são significadas por economistas ortodoxos de acordo com a noção estreita que possuem dentro da ideologia liberal ou com sentidos rasos que permeiam o senso comum. Assim foi quando desconsideraram o conteúdo antidemocrático do Teto de Gastos[xiii] e as discussões jurídicas acerca da sua constitucionalidade[xiv], defendendo uma democracia calcada nos ritos da representatividade. Quanto a essa legitimidade meramente formal, já nos alertava Mandela, “democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia”.
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
Referências
ALESINA, A. & ARDAGNA, S. “Large Changes in Fiscal Policy: Taxes vs. Spending. In: BROWN, J. R. (ed.), Tax Policy and the Economy, Chicago: University of Chicago Press, 2010, p. 35-68.
ALESINA, A.; FAVERO, C. & GIAVAZZI, F. Austerity: When It Works and When It Doesn’t. New Jersey: Princeton University Press, 2019.
BLYTH, M. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. Trad. José Antônio Freitas e Silva. São Paulo, Autonomia Literária, 2017.
BREUER, C. Expansionary Austerity and Reverse Causality: A Critique of the Conventional Approach. Institute for New Economic Thinking, Nova York, Working paper nº 98, 2019.
FUNDAÇÃO FRIEDRICH Ebert Stiftung; Fórum 21; GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política; Plataforma Política Social. Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil. São Paulo, 2018. Disponível em: » http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/Austeridade-e-Retrocesso.pdf. Acesso em junho de 2020.
PLEHWE, D.; NEUJEFFSKI, M.; MCBRIDE, S.; EVANS, B. Austerity: 12 Myths Exposed. SE Publishing, 2019.
SERRANO, F. & PIMENTEL, K. Será que “acabou o dinheiro”? Financiamento do gasto público e taxas de juros num país de moeda soberana. Revista de Economia Contemporânea, v. 21, n. 2, 2017.
TAVARES, F. M. M. & RAMOS, P. V. G. O Novo Regime Fiscal Brasileiro e a Democracia: interpretações sobre uma incompatibilidade. Bol. Goia. Geogr., Goiânia, v. 38. n. 3, 2018, p. 450-472.
[i] Alesina & Ardagna (2010)
[ii] Plehwe et al (2019)
[iv] Alesina et al (2019)
[vi]https://brasil.elpais.com/internacional/2020-01-23/ate-o-fmi-critica-a-austeridade-e-defende-gasto-social-para-evitar-protesto.html
[vii]https://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/paulo-guedes-entra-na-articulacao-por-pec-da-regra-de-ouro/
[x] Fundação Friedrich (2018)
[xiii] Tavares & Ramos (2018)
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