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Austeridade fiscal e expansão da infraestrutura: uma combinação impossível

Ao contrário do que diz o senso comum, o Brasil não é o único país carente de infraestrutura. Desde a eclosão da crise, estudos de consultorias, governos e instituições multilaterais trazem diagnósticos para o baixo crescimento global e concordam que a carência de infraestrutura, na maioria dos países, é uma das principais causas. [1].

Consequentemente, o investimento em infraestrutura se apresenta como um dos caminhos da retomada. O arranque para o crescimento é no período de construção, com a criação de muitos empregos diretos e indiretos. E na medida em que os novos projetos entram em operação, os ganhos de competitividade para os usuários diretos da infraestrutura e para os demais beneficiados pelas externalidades convertem-se em novo ciclo de investimentos e de crescimento.

Em quase todos os países, o Estado é um dos agentes mais engajados nos financiamentos e investimentos em infraestrutura. Mas quando o cerne da própria política de crescimento é a austeridade fiscal, a promoção da infraestrutura se torna um desafio muito árduo, senão impossível. O que se passa na Europa deveria ser tomado como um aviso para a atual política econômica brasileira, que abraça a tese da promoção da infraestrutura a partir do ajuste fiscal.

Promoção da infraestrutura: o exemplo europeu

A política de austeridade europeia visa a recuperar a confiança empresarial e induzir o crescimento a partir da obtenção de resultados fiscais e do controle da dívida pública.

Contudo, ao menos no curto prazo, a maior parte dos governos não encontra espaço fiscal para realizar ou financiar os investimentos em infraestrutura, retardando o crescimento. A administração desse conflito se resume na crença segundo a qual a própria política de austeridade fiscal, ao aumentar a confiança, torne possível aos governos transferir o protagonismo na realização dos investimentos e do financiamento da infraestrutura para o setor privado.

Ocorre que, diante da prorrogação da estagnação econômica e da consolidação da incerteza – em grande medida, um resultado das políticas de austeridade –, o setor privado não tem demonstrado o ímpeto esperado pelos projetos na Europa.

O último levantamento disponível sobre a evolução de projetos de parceria público-privadas revela que o total de contratos assinados no primeiro semestre de 2014 chegou à casa dos 9 bilhões de euros, valor equivalente ao do primeiro semestre de 2005 e ainda bem inferior aos 12 bilhões de euros do primeiro semestre de 2011.[2].

De acordo com a Comunidade Econômica Europeia, a culpa pelos baixos investimentos não é da expectativa de retorno dos projetos, uma vez que há evidente necessidade dos equipamentos, uma simplificação oriunda da confusão entre necessidade e demanda efetiva.

No entanto, indicam precisamente que, além do suspeito usual, a regulação inadequada, a estruturação dos financiamentos responde pela carência de investimentos privados.

De fato, a despeito dos baixíssimos juros praticados, o sistema financeiro privado europeu não parece ter mais a mesma capacidade e/ou interesse no financiamento da infraestrutura. O virtual desaparecimento da oferta de garantias financeiras, com a falência de algumas seguradoras monolines, dificulta a alocação de riscos da estruturação de projetos.

Além disso, a “desalavancagem” bancária ainda em curso, a maior preferência pela liquidez dos investidores institucionais e a evolução da regulação financeira pós-crise, privilegiando a redução da exposição de instituições financeiras ao risco de insolvência –Basileia III (bancos) e Solvency II (seguradoras europeias) – se conjugam perversamente para escassear a oferta de financiamento de longo prazo.

Diante dos desafios para acelerar os investimentos em infraestrutura, reduzindo a participação do Estado em prol dos empreendedores, investidores e financiadores privados, a Europa tem desenvolvido instrumentos mitigadores de risco. De um lado, esses instrumentos economizam recursos públicos, ao menos no presente, pois não implicam desembolsos imediatos. De outro, estimulam o financiamento privado, ao transferir riscos para o setor público.

Assim, linhas de crédito contingentes, empréstimos juniores para fortalecer o rating de debêntures de infraestrutura e garantias feitas sob encomenda têm resumido os esforços para alavancar o financiamento e o investimento privado.

Até o momento, os resultados decepcionam. A própria Comissão Europeia reconhece os fracassos das tentativas de retomada, afirmando ao Parlamento Europeu, que “a recuperação econômica, a criação de emprego, o crescimento de longo prazo e a competitividade estão, portanto, entravados” e que é, portanto, “urgente um Plano de Investimento para a Europa”[3].

Curiosamente, o Plano é um pouco mais do mesmo: a criação de um Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos para ampliar a oferta de garantias para a infraestrutura, sempre dentro do arcabouço da austeridade.

Investimento em infraestrutura no Brasil: a experiência recente

Depois de duas décadas de baixos investimentos em infraestrutura, a partir de 2004 houve uma série de iniciativas para promovê-los. Dentre elas, destaca-se a Lei de Parcerias Público-Privadas (PPP) e o Novo Modelo do Setor Elétrico, em 2004; o Projeto Piloto de Investimentos (PPI), em 2005; o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) I, em 2007, e II, em 2011; e o Programa de Investimento em Logística (PIL), de 2013.

Os investimentos em infraestrutura expandiram-se aceleradamente. Dados da Associação Brasileira das Indústrias de Base e Infraestrutura (ABDIB) revelam que, de 2003 até 2013, a taxa linear de crescimento anual dos investimentos em infraestrutura situou-se em torno de 11% [4].

Estimativas preliminares a partir da consulta a várias edições do “Perspectivas do Investimento” [5],5 do BNDES, indicam que os investimentos em infraestrutura saíram de 1,6% do PIB, em 2003, até atingirem 2,5% do PIB, em 2013.

O segredo da aceleração dos investimentos em infraestrutura não residiu nos superávits fiscais. O motor da retomada desses investimentos foi a decisão política do governo federal de empregar recursos financeiros, seja como investidor, seja como financiador, com e sem parceria com o setor privado.

Claro que parte do financiamento e do investimento público em infraestrutura obedeceu à lógica das políticas anticíclicas. Mas desde o início do governo Lula havia orientação para ampliar a infraestrutura. Dados do Ministério da Fazenda6 [6] mostram que os investimentos públicos federais, que eram de 1,4% do PIB em 2003, cresceram praticamente todos os anos, chegando em 2014 à marca de 2,8% do PIB.

Estados e municípios investiram mais, e um volume expressivo de projetos com parceiros privados foi levado adiante. Mas parte relevante desses investimentos só ocorreu a partir de financiamentos dos bancos públicos. Coube ao BNDES a maior fatia no financiamento da infraestrutura. Seus desembolsos para esse segmento foram ampliados, em termos reais, de R$ 14 bilhões em 2003, para R$ 51 bilhões em 2013, uma taxa de crescimento anual linearizada de 13,8%.

Infraestrutura e austeridade – aqui será diferente?

A redução do resultado primário do setor público, desde 2011, e os R$ 415 bilhões de aportes ao BNDES, de 2009 a 2014, foram apontados pela oposição a Dilma como os principais responsáveis por uma suposta crise fiscal que, por sua vez, seria a causa da queda do crescimento, da inflação e da reversão da balança comercial.

Surpreendendo ao menos parte da audiência, a resposta do governo, desde o final de 2014, foi a enunciação, pelo Ministro Joaquim Levy, de uma correção na política econômica com a adoção da austeridade fiscal. Tal como no caso europeu, o objetivo é reconquistar a confiança empresarial a partir da obtenção de superávits primários de 1,2% do PIB em 2015, e de pelo menos 1,9% do PIB em 2016 e 2017. Além dessas metas, foram declarados encerrados os aportes para os bancos públicos.

A despeito desse anúncio, os investimentos em infraestrutura se mantiveram na pauta, preservando seu lugar na receita do crescimento. Para tanto, rompeu-se com o modelo bem-sucedido dos dez últimos anos, em favor da adoção da linha europeia, cortando-se os recursos públicos para a infraestrutura.

De um lado, o contingenciamento de despesas para 2015 deverá atingir os projetos do PAC. De outro, o BNDES deverá mudar o seu papel no financiamento da infraestrutura, deixando de ser o principal financiador, para se transformar em “estruturador”. Sua função será, idealmente, a de dar sua chancela aos bons projetos, atraindo investidores e financiadores privados, sejam eles nacionais ou estrangeiros.

Nos próximos dias, o governo brasileiro anunciará um pacote de projetos de infraestrutura todo inspirado nas novas diretrizes, colocando à prova o novo modelo. Ainda não se sabe qual o seu conteúdo, mas dificilmente poderá ser ambicioso.

O horizonte para investidores e financiadores privados está muito prejudicado. Do lado internacional, a economia americana não firma sua recuperação, a Europa não consegue se mover, e a Ásia, ainda que bem das pernas, desacelera. Não é razoável, dessa forma, esperar uma retomada estável para as exportações de manufaturados e de commodities brasileiras, um fator que poderia inspirar novos projetos de infraestrutura financiados pelos privados [7].

No front financeiro, as políticas monetárias americana e europeia, mesmo mantendo as taxas de juros em zero, não têm sido capazes de mobilizar o financiamento de longo prazo em condições adequadas em seus próprios países, tamanha a reticência com projetos de longo prazo.

Para piorar, de acordo com a Fitch [8], não há por que esperar que agentes financeiros do exterior se interessem em financiar a infraestrutura brasileira, haja vista os elevados custos de hedge cambial, além da incerteza sobre a demanda pelos serviços de mais infraestrutura.

A Fitch também não acredita que será fácil atrair bancos privados brasileiros e investidores institucionais para o financiamento da infraestrutura local, tomando o espaço que será deixado pelo BNDES. E não é apenas porque o sistema financeiro local não tenha uma história comprometida com o financiamento de longo prazo. Os juros brasileiros, ao contrário dos europeus, são muito elevados e voláteis. A taxa Selic, que dá o piso da estrutura de juros, acabou de ser fixada em 13,25% a.a., depois de subir 6 pontos percentuais em dois anos. Não é de admirar que o custo financeiro ajustado ao risco para projetos de infraestrutura se estabeleça em patamar muito elevado.

Apenas projetos que comportem tarifas muito elevadas para compensar os custos do hedge cambial do financiamento em moeda estrangeira, ou dos juros ajustados ao risco, em moeda local, terão chance de sair do papel.

Além disso, haverá, ainda, um prêmio a ser cobrado para compensar as incertezas acerca da demanda pelos serviços de infraestrutura, seja por causa do nível instável da renda doméstica, seja por causa da incerteza acerca da demanda de commodities.

Por construção, os investimentos em infraestrutura, em tempos de austeridade, serão bem menores do que seriam com o investimento público e com o financiamento em condições mais favorecidas. Apenas poucos projetos poderão compensar os custos financeiros exigidos pelo setor privado.

Os investimentos serão baixos, resultando, no curto prazo, em pequena mobilização de empregos. No longo prazo, o seu efeito não será mais do que uma contribuição modesta para o aumento da competitividade, seja pela escassez de equipamentos, seja pelo custo elevado dos serviços de infraestrutura.

Cabe ainda uma especulação preocupante: muito provavelmente, a modicidade tarifária e a universalização do acesso, que orientaram a lógica do investimento em infraestrutura, venham a ser substituídas pela licitação de projetos com outorga onerosa, [9] encarecendo um pouco mais as tarifas.

O foco na arrecadação, para o erário, e na melhoria da rentabilidade, para atrair investidores, ao lado de um rebaixamento no ideal da universalização do acesso, muda radicalmente a lógica do modelo de investimentos em infraestrutura que, de 2003 a 2014, contribuiu com as bases materiais do modelo de desenvolvimento inclusivo.

A solução das atuais dificuldades da economia brasileira não é trivial. Mas, tal como no caso europeu, a combinação entre austeridade fiscal e investimento em infraestrutura, para construir um novo ciclo de crescimento, não deverá ser mais do que esperança, pois encerra uma contradição.

A política de austeridade prejudica os investimentos públicos e privados em infraestrutura, não estimula o crescimento e pode ser um obstáculo para a continuidade da distribuição de renda.

Aí, a esperança é que, em vista da renovação dos apelos por mais austeridade, que virão na esteira dos maus resultados econômicos, seja possível trilhar uma outra direção de política econômica, antes que as condições materiais e políticas para a retomada se tornem ainda mais escassas.

Acesse a íntegra da Revista Política Social e Desenvolvimento AQUI.

Crédito da foto da página inicial: www.grandesconstrucoes.com.br

NOTAS

[1] Alguns exemplos do material recente produzido por consultorias privadas são “Infrastructure 2013 – Global priorities, global insights”, da Ernst & Young e Urban Land Institute (2013); “Infrastructureproductivity: howtosave $1 trillion a year”, da McKinsey (2014)). Das instituições multilaterais, “Is it time for nainfrastructurepush? The macroeconomiceffectsofpublicinvestment”, no World Economic Outlook, FMI, Outubro de 2014 e o recente “Um plano de investimento para a Europa”, de novembro de 2014, comunicado da Comissão Europeia sobre a necessidade de acelerar os investimentos em infraestrutura na Europa.

[2]  Levantamento realizado pelo European PPP Expertise Centre, “Market Update Review of the European PPP Market First half of 2014”, disponível em http://www.eib.org/epec/resources/epec_market_update_2014_h1_en.pdf.

[3]  “Um plano de investimento para a Europa”, comunicado da Comissão Europeia, de novembro de 2014, disponível em http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2014_2019/documents/com/com_com(2014)0903_/com_com(2014)0903_pt.pdf

[4] Relatório ABDIB, diversos números disponível em

[6] Anuário Estatístico, disponível em

[7]  Em 19 de maio, os chineses se comprometeram formalmente a investir/financiar cerca de R$ 53 bilhões de dólares no Brasil, boa parte em infraestrutura. É sintomático que essa declaração firme de interesse em investimentos, provavelmente a mais importante para o Brasil neste ano, reflita um acordo político e não o livre jogo das forças de mercado.

[8]  “Para Fitch, BNDES menor abre espaço para bancos”, Valor Econômico, 28.04.2015, p. C 14

[9] Em 25.04.2015, reportagem de O Globo sobre uma reunião de ministros para definir novo pacote de concessões menciona a renovação das concessões de infraestrutura com cobrança de outorga, na contramão da lógica que governou a antecipação da renovação de contratos de energia elétrica e do leilão recente da concessão da Ponte Rio-Niterói. Conferir http://oglobo.globo.com/economia/reuniao-de-dilma-com-ministros-sobre-infraestrutura-termina-sem-anuncio-de-medidas-15973019

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