Publicado originalmente no portal Corecon
O economista Michal Kalecki já alertava sobre a opção do gasto armamentista diante de uma crise capitalista. Para isso, as classes dominantes aceitam que se faça até financiamento por déficit público mesmo que, para recuperar o desenvolvimento socioeconômico, continuem a impor a moral do orçamento equilibrado e o programa da austeridade fiscal máxima. Isso não quer dizer que não haja contradições. Segundo cálculos do interventor militar na segurança pública fluminense, o orçamento total na área seria: R$ 1 bilhão para despesas com pessoal, R$ 600 milhões para pagamentos de dívidas já existentes, e R$ 1,5 bilhão para custeio e investimentos até o fim do ano. Esses recursos se voltam apenas para atender custeio e investimento até o fim do ano.
Já as despesas com pessoal (folha dos funcionários públicos estaduais da área) e dívidas existentes se mantiveram a cargo do governo fluminense, mesmo que, sob intervenção, a responsabilidade direta da pasta tenha passado a ser do governo federal. Para dar conta disso na urgência necessária, a administração estadual vem buscando autorização na Alerj para contrair novos endividamentos. Mantém-se a crença, no interior do governo estadual, de que o ajuste fiscal é um pressuposto, e que a contratação de novos empréstimos não seria elevar nível de endividamento porque seria usado inclusive para pagar dívidas, logo, reduzi-lo.
Nesse sentido, o governo estadual continua ignorando os efeitos recessivos de sua crença e que esta é refém de um “ilusionismo contábil”. A saber: endividar-se e fingir que isso não tem impactos visíveis porque o acordo federal (Regime de Recuperação Fiscal) permite disfarçar isso. Mas a conta vai chegar depois, quando será outro governo e este que será responsabilizado. Nesse ponto, é importante destacar a conexão da austeridade com a intervenção. De um lado, mantém a ciranda de agiotagem federal e suas imposições (como queima de patrimônio público) e, de outro lado, cria uma esfera de poder que se justapõe sem ter que lidar com o cerne financeiro da questão fluminense.
O efeito ideológico permite ocultar as responsabilidades do governo federal e passar a imagem que ainda está sendo generoso e ajudando além do esperado. Por isso, a questão da intervenção deve ser compreendida não como um problema em si mesmo, mas como algo que não tem como desconsiderar a crise estadual e o sério risco de reproduzir seus determinantes fundamentais (em particular, a desestruturação da máquina pública estadual). Mobilizar-se para evitar isso é essencial. Ou mira-se na crítica da austeridade ou a crítica à intervenção não vai superar o nó do problema.
A saber, a intervenção foi decidida para dar legitimidade às medidas de austeridade. Mas é um processo contraditório e esbarra em seus próprios limites. Isso porque a austeridade cria entraves para além das ações das forças armadas. Apesar de servirem ao mesmo projeto de poder, essa tensão interna é que deveria ser o foco das lutas, pois a forma de superar o discurso legitimador da intervenção é entendendo e explorando suas contradições com o resto da narrativa histórica. Como ainda houve poucas mobilizações no Rio contra a austeridade e seu nexo com a crise federativa e a agiotagem promovida pelo governo federal, o processo avança.
A austeridade fiscal é uma ideia perigosa ao disfarçar o quanto é irresponsável diante da gravidade do quadro social. Não há capacidade de gestão sem recursos, muito menos possibilidade de planejamento. Quase sempre recai em discursos vagos de “choque de eficiência” como panaceia e na tese de que o problema é “desengessar” o orçamento. Fazendo uso de expressões como “o governo não fabrica dinheiro”, aposta que os recursos necessários (por exemplo, investimento em inteligência policial) vão sair da redução da despesa com pessoal quando o Poder Executivo da administração estadual não tem uma máquina pública inchada, ou então de desvinculações das proteções legais para áreas sociais. Inversamente, cabe ser discutido como fortalecer a máquina pública estadual, dando condições não só de capacidade de gestão, como condições para ações estratégicas de planejamento.
Na atualidade, o Estado do Rio de Janeiro “vende o almoço para pagar o jantar”, não tendo sucesso nem no ajuste fiscal nem na recuperação econômica ao não articular ambos corretamente. Com a opção pela intervenção, não se pode fugir à questão de que cabe uma reestruturação das políticas públicas estaduais e seus modelos de financiamento. Nesse sentido, uma fala recente da secretária de Segurança de Roraima, Giuliana de Castro, ganha importância: “os Estados não precisam de intervenção, mas de colaboração da União com seus projetos”. Essa sim é uma resposta federativa! Inversamente, o governo federal anunciou a oferta aos governadores de empréstimo para realizarem investimentos na área. Operacionalmente, oferecer empréstimo quando muitos estados estão “quebrados” só pode ser piada. A não ser que seja uma isca para eles se endividarem mais e depois ficarem na mão dos credores, como o caso fluminense.
Em particular, o Rio de Janeiro, que seria um dos estados mais carentes de investimentos na área, não teria a menor condição de se endividar mais (a não ser que venha ordem de cima para se flexibilizar condicionantes). Por outro lado, investimento público federal (ou seja, baseado em orçamento federal sem ônus para cofres estaduais) virou um instrumento esquecido e boa parte da grande mídia não enfatiza que empréstimo em linha BNDES não é o mesmo que ter investimento federal direto. O orçamento federal está ainda reservado para a remuneração rentista no atacado da política macroeconômica e sua política de teto, bem como para a distribuição fisiológica de benesses entre projetos de aliados no varejo do Congresso.
Soma-se que o orçamento estadual se mantém reservado para economizar recursos para honrar futuramente os ganhos de agiotagem, o que inclusive essa medida de estimular pegar mais crédito poderia fortalecer mais. Portanto, o necessário é investimento público federal e um rearranjo federativo para aumentar a capacidade de cumprir estadualmente o custeio necessário. É importante avançar a proposta de um sistema único (alguns comparam como o SUS da segurança) com participação de orçamento federal, ao invés de só ser ofertado mais endividamento quando a maioria dos estados passa por dificuldades financeiras. O governo federal, com consentimento do governo estadual, continua ignorando o problema fundamental: como recuperar a escala estadual de políticas. Esse é um estrago grave e de difícil superação no bojo de todo o processo que a visão usual encara, seja idealizando como “soluções” ou pragmaticamente se convencendo como “o que dava para fazer”. Minha interpretação sobre a atual crise fluminense se baseia no fato de que não se vivia antes uma “época de ouro” nem o atual cenário negativo se deve a fatores inesperados. Destaco o cerne do problema em uma crise estrutural, evidenciada na tendência à “estrutura produtiva oca”, como discuti em diversos trabalhos.
Antes não enfrentada satisfatoriamente, então essa tendência se explicitou em um contexto mais desfavorável como desdobramentos, em particular, do mau enfrentamento de tensões federativas e da desestruturação da máquina pública estadual. Nesse sentido, o posicionamento que defendo não se trata de um discurso contra o papel da polícia e sim da ideologia da guerra e racionalidade econômica por trás. Estão sendo forçados a matar e serem mortos em nome de interesses que, se na aparência, parecem elogiar o policial, na essência, deixam-lhes vulneráveis do ponto de vista operacional, como diante da opinião pública.
Por um lado, a valorização dos policiais é necessária como classe trabalhadora, ao invés de suas vidas serem moeda de troca para os “senhores da guerra” e sua necessidade de gastos armamentistas. Por outro lado, a coerência da proposta alternativa estará na visão estratégica para superar a barbárie associada como âncora econômica. Sobre esse último aspecto, cabe explicar que o quadro de violência cotidiana no Rio de Janeiro não tem motivações ideológicas prévias, mas sim organização capitalista de caráter mercantil. Aqui não se mata por insurgências e terrorismo, nenhuma morte visa a tomar o Estado oficial. Aqui não se vive uma guerra, mas sim um ambiente de negócio diferente do idealizado pelas associações de empresários e tecnocratas. Nesse ambiente, não há visão político-estratégica para maior agregação de valor, é feito de controle dos circuitos de circulação e poder monopólico sobre territórios que tem centralidade nesses circuitos. A lógica da concorrência é resolvida pelo elevado gasto armamentista. Seria uma reflexão fácil se apontasse que isso é culpa do capitalismo enquanto ordem mundial. Digo fácil, porque seria uma explicação generalista. Na verdade, a questão é mais específica: é avaliar que tipo de capitalismo. Logo, é indagar que o desenvolvimento do capitalismo no Rio de Janeiro manteve um padrão de acumulação sobre domínio conservador de capitais mercantis.
Esses capitais se reproduzem com recorrente uso de meios extraeconômicos, mais especificamente uso da força para impor estruturas de mercado baseadas no controle social e na expropriação permanente. Mata-se porque é necessário para um negócio que, mesmo gastando muito em custo fixo e sendo próximo da barbárie, é uma das âncoras perversas da economia local. Nenhuma surpresa para uma região que fazia o mesmo, gastando muito e próximo da barbárie, para produzir café de base escravista. O mesmo sangue negro escorrendo entre atividades comandadas por capitais mercantis (lembrando que o café do Rio de Janeiro não era dominado por capitais agrários e sim urbanos). É claro que choca, mas indo além de refletir sobre o horror, é preciso interpretar porque é um padrão de acumulação tão lucrativo, apesar de seus limites.
Investigar esses limites é importante não só para entender como pode ser superado civilizatoriamente, mas, em particular, como pode ser também fortalecido por uma lógica que, apesar de cruel, é feita com menos desperdício de recursos e vidas, como a aplicada pelo PCC paulista. Como nossa cafeicultura foi superada pela paulista, nossa economia do ilícito pode seguir o mesmo caminho. Evidentemente, o que se deve buscar nesse intervalo, que tal cenário não se concretizou, é como introjetar novas forças produtivas com relações de produção mais avançadas. O que se associa ao desenvolvimento de complexos produtivos que faça esse território passar a ter um padrão de acumulação finalmente sob comando de capitais produtivos. Isso ganha o nome de estratégia de (re)industrialização.
O que falta ao Rio de Janeiro não é ser polo de negócios, mas sim polo de uma economia regional organizada por complexos produtivos. Meramente achar que desenvolvimento é ter ambiente de negócios é esquecer-se de perguntar: para qual negócio? É sempre necessário lembrar que o que choca é feito porque tem um cálculo empresarial e uma lógica econômica por trás que, não sendo superada por outra base econômica, reproduz-se ao não permitir que nada atrapalhe o domínio de seus negócios. Dados da última pesquisa Datafolha sugerem que o apoio à intervenção é maior em áreas vitimadas por milícias, dado que moradores de comunidade apontaram ter mais medo da polícia que de traficantes e a sub-região da capital que mais apoia é a Zona Oeste. Provavelmente esperam que, com a intervenção, seja superada a influência da “banda podre” na polícia e seus negócios.
Portanto, é importante ter claro que Rio de Janeiro tem as forças de segurança que sua base econômica precisa. A intervenção tem conexão direta com as necessidades de sustentação de um programa de austeridade combinado ao histórico domínio de capitais mercantis na organização do espaço urbano; ambos demandam elevados gastos armamentistas para se legitimarem. Não se deve discutir a dimensão da superestrutura capitalista sem a dimensão de sua infraestrutura, senão limita-se à revolta sem método e, assim, deixando de priorizar a essência econômica do processo para só manter o foco na perplexidade moral e na denúncia social de sua aparência. Só valorizando a classe trabalhadora, incluindo policiais, e questionando um modelo pautado na austeridade combinado aos “senhores da guerra” que se dá resposta aos interesses envolvidos.
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