top of page
fundo.png
Foto do escritorBrasil Debate

As laranjas têm rosto de mulher: candidaturas políticas e desigualdades na grande mídia brasileira

Publicado no site Manchetômetro

“Ela prefere outras coisas, ver o Jornal Nacional e criticar. Do que entrar pra vida partidária. Não é muito da mulher.” Luciano Bivar [1]

O intuito deste ensaio é explorar a cobertura feita pela grande imprensa de um recente ocorrido no cenário político brasileiro: a revelação de candidaturas laranja do Partido Social Liberal (PSL) nas eleições de 2018. De que maneira os grandes jornais nacionais noticiaram o problema? Como as notícias foram formuladas? A imprensa tem cumprido o papel de informar a sociedade? O Brasil ostenta uma das piores posições no mundo no quesito participação feminina na política institucional [2]. Em terra de desigualdades severas, afirmações como a de Luciano Bivar, fundador e atual presidente do PSL, não são eventos raros. As respostas fáceis a problemas sociais e políticos complexos, no entanto, não resistem a análises mais cuidadosas.

Em 2014, por exemplo, uma pesquisa divulgada pela Procuradoria Especial da Mulher e o DataSenado mostrou que a “falta de interesse por política” era o segundo motivo mais alegado por entrevistadas mulheres para não se candidatarem a cargos eletivos [3]. Apresentado de maneira isolada, o dado poderia reforçar a afirmação de Bivar. Contudo, a proporção dessa resposta entre mulheres (23%) é inferior à sua ocorrência entre os homens (26%). Não existe qualquer essência natural ou biológica que determine pretensões profissionais de acordo com gênero. A normalização de assimetrias é um procedimento corriqueiro, reproduzido em debates públicos não somente por representantes convencionais do machismo e da misoginia, como também por padrões de socialização diferenciados, discriminações sexuais e pobreza de informações.

A mesma pesquisa do DataSenado atesta que a principal justificativa mencionada por mulheres para o afastamento da vida política é a falta de apoio nos partidos (41%). No PSL, sigla do presidente Jair Bolsonaro, a posição de resistência à presença feminina é declarada publicamente, mas nem sempre os processos de exclusão são de simples apreensão. A legislação eleitoral brasileira sofreu ao longo dos anos algumas transformações que tinham por objetivo declarado enfrentar a baixa diversidade de gênero nas disputas políticas.

O primeiro passo mais significativo foi a instituição de cotas para candidaturas femininas em eleições para cargos proporcionais, o que não garante a representação de fato. A reserva de 30% das vagas, não obstante, rapidamente esbarrou em outros problemas: os partidos nem sempre cumpriam a regra e, quando o faziam, perpetuavam as desigualdades distribuindo recursos financeiros de maneira bastante desigual, situação que impactava diretamente na capacidade de atração de votos por parte das candidatas.

O pleito de 2018 ocorreu após o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinarem a fixação de cotas mínimas para candidatas na distribuição dos fundos partidário e eleitoral, bem como do tempo da propaganda política. Ainda assim, os resultados da última disputa não foram animadores e salientam a contínua necessidade de reflexão sobre as oportunidades e condições da competição eleitoral. As mulheres conquistaram apenas 15% das cadeiras da Câmara e 14,8% do Senado, a despeito de representarem 51,6% da população brasileira.

Contrariamente à noção de que a baixa presença feminina na política institucional é produto de mera opção e ou gosto livremente determinado, extensa literatura especializada da área de ciência política tem buscado desvendar os mecanismos que limitam a participação de mulheres em cargos eletivos. Esses estudos discutem aspectos como a efetividade de novos arranjos institucionais, sistemas políticos e legislações que definem cotas, a severa violência política praticada contra o grupo feminino e as consequências da divisão desigual do trabalho entre homens e mulheres [4].

A seguir, procuramos fornecer alguns indícios de como a grande mídia aborda esses problemas focando a análise no caso da cobertura jornalística das candidaturas laranja do PSL entre os dias 4 de fevereiro e 16 de fevereiro. No decorrer das últimas semanas, a política brasileira foi tomada por três estágios de escândalos, cuja fonte original foi a Folha de São Paulo. Em 4 de fevereiro [5], o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio (PSL), tornou-se alvo de denúncias. Difundidas a partir do dia 10 de fevereiro [6], as acusações atingiram o então Secretário-Geral da República, Gustavo Bebianno, e Luciano Bivar, ambos do PSL. Culminando, por fim, no terceiro estágio com a primeira queda ministerial do Palácio do Planalto. A crise que afeta diferentes atores do governo e do partido de Bolsonaro tem em comum o mesmo problema, qual seja, o desvio de verbas públicas em campanhas eleitorais de mulheres.

A suposição de que se tratam de candidaturas de fachada é embasada principalmente na diferença desproporcional entre gastos de divulgação das figuras políticas e quantidade de votos recebidos por elas. Mas existem elementos extras: de acordo com a edição de 04 de fevereiro da Folha, Marcelo Álvaro Antônio foi responsável por comandar quatro candidaturas em Minas Gerais que receberam R$ 279 mil de fundo partidário, embora não possuam evidências de atividades de campanha e, somadas, não tenham conquistado nem 2.000 votos.

Cleuzenir Barbosa, uma das supostas candidatas, prestou depoimento ao Ministério Público e afirmou ter sido coagida por dois assessores de Álvaro Antônio a devolver R$ 50 mil reais de verbas. Parte dos gastos declarados nessas campanhas foram destinados a empresas com ligação com o gabinete do político na Câmara.

O caso de Bebianno e Bivar, por sua vez, chama atenção pela magnitude dos gastos: os dois destinaram à Maria de Lourdes Paixão, candidata à deputada federal, R$ 400 mil para gastos de campanha, mais do que o próprio Jair Bolsonaro, presidenciável à época, declarou ter ganho [7]. Paixão argumentou que utilizou 95% da verba, recebida em 03 de outubro, para impressão de 9 milhões de santinhos às vésperas da eleição (dia 07 de outubro). Jornalistas da Folha tiveram dificuldades de encontrar as gráficas indicadas na prestação de contas em funcionamento, assim como registros de atos de campanha de Maria, que recebeu apenas 247 votos.

A Folha de São Paulo, além de ter revelado os possíveis esquemas de corrupção, foi a mídia que mais abordou o caso. Diferentes espaços e destaques em 8 edições – manchetes e chamadas em capas, editoriais e colunas de opinião – trataram do assunto. O enquadramento negativo dominante nas notícias centralizou a narrativa basicamente no ato corruptivo e na crise gerada ao governo. Diferente do tom descritivo das manchetes, o editorial intitulado “Vexame Laranja” [8], considera o esquema primarismo do “ex-nanico” PSL, um “resquício da pequenez do passado recente a assombrar o governo”. Mesmo que de forma rápida e superficial, o editorial qualifica como vergonhosas as “elucubrações canhestras de Bivar” [sobre mulheres não terem interesse por política]. O fato de todas as candidaturas controversas serem de mulheres não incitou o jornal a aprofundar discussões sobre sub-representação feminina.

Por outro lado, a Folha foi o único impresso a dar alguma abertura à particularidade de as candidatas laranjas serem mulheres. A infração das regras eleitorais foi objeto de comentário na manchete do dia 04 de fevereiro e apareceu em três colunas de opinião. Em “O laranjal da sigla do presidente” [9], Leandro Colon questiona a desobediência à lei de cotas, confronta as afirmações da entrevista de Luciano Bivar, presidente do PSL, qualificando-as de misóginas e finaliza declarando que Bolsonaro tinha que repudiar publicamente o líder do seu partido, a fim de ser coerente com as negações que sustenta sobre ser machista.

Em “Praga do amarelinho” [10], Roberto Dias relata o ocorrido e afirma: “Usar a luta pela participação feminina na política para cometer desvio? Feito, e acrescido de misoginia aberta”. Por fim, Hélio Schwartsman em “Vocação para picaretagem” [11], tece comentários sobre diferentes formulações de cotas em países do mundo, sugere que a iniciativa é uma decisão relevante para mitigar o atraso do Brasil em relação à representação feminina na política e ironiza a subversão do PSL em seguir a lei.

Os demais jornais de grande circulação no país, sejam os impressos, O Globo [12] e Estado de São Paulo [13], ou o televisivo Jornal Nacional, só começaram a noticiar o escândalo após Carlos Bolsonaro escrever nas redes socais que Bebianno era mentiroso, instalando uma crise no Governo Federal. A partir do dia 14 de fevereiro a cobertura se intensificou noticiando a trajetória da queda do ministro, sem discutir, nem tangenciar, o tema da sub-representação feminina.

Por fim, o Jornal Nacional noticiou a crise todos os dias entre 13 e 16 de fevereiro [14]. Alguns fatores gerais chamam atenção na cobertura do meio televisivo. Em distinção a inúmeros ocorridos de corrupção divulgados sobre partidos de esquerda, o jornal não ouviu a oposição. Diversos trabalhos do Manchetômetro salientam o tratamento diferenciado que o noticiário concede a partidos de esquerda e direita. No que toca ao PSL, os jornalistas da Rede Globo se restringiram a captar comentários de integrantes do próprio partido. É digno de nota, ademais, o protagonismo que o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, tem recebido como analista exterior às polêmicas do governo.

A atenuação do Jornal Nacional frente aos escândalos recentes do PSL obteve uma abordagem especial em uma notícia veiculada no dia 15 de fevereiro [15]. Após mencionar que a crise no governo Bolsonaro era fruto de candidaturas laranjas, a reportagem divulga um levantamento que mapeia a existência de 51 casos semelhantes em 18 estados e partidos diferentes. O problema, portanto, deixa de ser algo particular do PSL e torna-se compartilhado. Além disso, os jornalistas perseguem quatro candidatas de cidades pequenas e partidos distintos, Marisa Rosas, do Partido Republicano Brasileiro (PRB), Maria do Socorro de Cristo, do Democracia Cristã, Helem Machado Araújo e Alba Cilene Souza, ambas do Partido Trabalhista Cristão (PTC).

O tópico da representação política de mulheres passa, então, a ganhar uma ênfase perversa. Desigual e lanterna em participação feminina na Câmara, o Brasil não convive com muitas imagens positivas de políticas mulheres. A despeito disso, o espaço que o Jornal Nacional deu para comentar o gênero das candidatas consistiu não só em associá-las à corrupção e confrontá-las diretamente, como também, segundo o repórter, a proporção elevada do gênero neste esquema de corrupção (45 mulheres das 51 candidaturas) “é relevante porque o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que pelo menos 30% dos recursos do fundo eleitoral devem ser destinados a candidaturas femininas”. Nenhuma palavra sobre as mulheres serem incluídas marginalmente nas cotas eleitorais ou encontrarem dificuldades de atuação dentro dos partidos.

Em seguida, o jornal dá voz a uma promotora especialista em irregularidades de candidaturas de mulheres, que defende a ampliação das punições aos partidos para evitar fraudes. A ambivalência na edição não define se o empecilho ao uso correto de recursos públicos está na legislação eleitoral que criou o mecanismo de cotas, ou no sistema como um todo.

As demandas por participação política são agenda central no movimento feminista desde que as mulheres passaram a se organizar coletivamente no século 19. Ainda que a política institucional não seja o único meio da parcela feminina se manifestar publicamente e agir politicamente, não parece certo que o país conserve uma dupla contradição: mulheres são maioria da população nacional, mas não encontram espaço substantivo nos ambientes de representação partidária; outros países com realidades muito díspares desfrutam de ambientes mais igualitários para as instâncias de governo; nós, em contrapartida, conservamos o atraso.

A grande mídia, como mostramos, não cumpre nem de longe a função de informar a totalidade da sociedade. Produz informação distorcida. Não problematiza as desigualdades. Consagra, com força, a ideia de uma natureza feminina avessa à política.

Notas

[1] Presidente do PSL em entrevista à Folha de São Paulo no dia 10 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/politica-nao-e-muito-da-mulher-diz-presidente-nacional-do-psl.shtml

[2] Women in national parliaments, dec. 2018. Disponível em:  http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm?month=6&year=2018

[4] Para maiores informações sobre esse debate, ler, por exemplo: Flávia Biroli, Luiz Augusto Campos, Flávia Freidenberg, Marlise Matos, Clara Araújo, Céli Pinto, Carlos Machado e outras/os.

[5] Ministro deu verbas públicas para candidatura de laranjas, Folha de São Paulo, 04 de fevereiro de 2019, p.1

[6] PSL deu R$ 400 mil para candidata laranja em PE, Folha de São Paulo, 10 de fevereiro de 2019, p.1

8] Vexame Laranja, Folha de São Paulo, 12 de fevereiro de 2019, p.2

[9] O laranjal da sigla do presidente, Folha de São Paulo, 11 de fevereiro de 2019, p.2

[10] Praga do amarelinho, Folha de São Paulo, 14 de fevereiro de 2019, p.2

[11] Vocação para picaretagem, Folha de São Paulo, 15 de fevereiro de 2019, p.2

[12] Bolsonaro diz que Bebianno mentiu e pode deixar governo, O Globo, 14 de fevereiro de 2019, p.1

[13] Desmentido por Bolsonaro, Bebianno diz que não sai, Estado de São Paulo, 14 de fevereiro de 2019, p.1

[14] Carlos Bolsonaro desmente Bebianno e governo enfrenta primeira crise, Jornal Nacional, 13 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7380100/programa/

[15] Crise entre Bebianno e Bolsonaro tem origem em suposta candidata laranja, Jornal Nacional, 15 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7386446/programa/

Crédito da foto da página inicial: Elza Fiúza/Agência Brasil

Comments


bottom of page