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As frentes de esquerda e a sabedoria das gambiarras e geringonças

O brasileiro Ruy Braga (ex-PSTU e atual PSOL) e Elísio Estanque (Bloco de esquerda português) assinam importante artigo no jornal Público, de Lisboa: “Uma geringonça para o Brasil?”.  Oportuno, merece muita atenção. Leia aqui a versão digital.

A meu ver, o artigo traz uma enorme contribuição ao debate político brasileiro. Digo “a meu ver” até porque já externei esse ponto de vista. E, deliberadamente, para sugerir tal reflexão, me dei ao trabalho de escrever um livrinho sobre a experiência do Bloco de Esquerda e o Podemos. O artigo dos dois vale desde logo por sua conclusão. Só que a conclusão conflita com algumas afirmações que a precedem. E a conclusão deixa de lado uma premissa fundamental – e que, com certeza, incomoda os autores (Ruy, pelo menos). Vejamos.

O artigo começa reconhecendo as “as inegáveis conquistas alcançadas pelos primeiros governos do PT”. Duas notas sobre essa afirmação. Primeiro, que elas existiram, é certo, mas, como sabem os autores, foram bem pequenas. Ocorre que, dada a enorme desigualdade existente no Brasil, conquistas pequenas como essas são simplesmente fantásticas para o lado de baixo e intoleráveis para o lado de cima. De qualquer modo, é algo positivo ver, na pena de gente que sempre o negou, que nem tudo no governo do PT foi traição de classe. Embora, reconheço, muita coisa me pareça perto disso – ou, pelo menos, foram concessões para lá de dispensáveis.

Mas as conquistas existiram – e certamente em parte explicam porque, ao contrário de certas análises mais apressadas, o “ciclo do PT” não é tão claramente “passado”. Recentes pesquisas de opinião (mais de uma) apontam não apenas o apelo popular (e eleitoral) de Lula, mas, também, o crescimento da preferência pelo PT, pelo partido. E tudo isso depois de uma guerra midiática anti-PT. Qualquer plano político sério tem que levar isso em conta.

Mas o uso do cachimbo entorta a boca, como se dizia antigamente. Falo de Ruy, mais diretamente, porque está muito mais ligado ao tema do que Estanque, por suposto. Assim, Ruy lamenta “certa reticência por parte da principal liderança popular da história brasileira: Luiz Inácio Lula da Silva”. É mais do que um lamento, é uma insinuação, que mais adiante se revela uma acusação. Não descarto que haja tal resistência – creio que existe – e ela seria menor, claro, em alguém como eu ou Ruy, que não temos as condições do ex-presidente. Não temos o eco (e, portanto, a responsabilidade) que ele tem. Nem temos a condição de cidadão à beira de uma condenação e, até, no limite, encarceramento. Se estivéssemos em tal condição, creio, teríamos algumas reticências.

Mais adiante, há outras afirmações indevidas ou carentes de comprovação factual. O artigo menciona a existência de negociações entre a direção do PT e o deputado golpista Rodrigo Maia para obter o afastamento de Temer. Seria bom comprová-las, até porque, explícita e enfaticamente, tanto Lula quanto a presidente do PT rejeitaram essa via. Se os autores têm informação relevante a respeito, seria bom expor ao público (e no Público…). Que haja petistas (e até grão-petistas) com essa inclinação, não duvido. Mas há em outros partidos de esquerda gente grossa que parece sonhar com Moro ou Dallagnol em sua chapa. Ou não? Mas, é relevante?

A dita reticência e o cultivo das negociações de gabinete à direita seriam, segundo o artigo, uma explicação para o arrefecimento das frentes de massa influenciadas pelo partido (como a CUT e a Frente Brasil Popular). O argumento poderia ter algum sentido, acho que tem, só que é um pouco arriscado dizer que “a desmarcação da greve geral inicialmente prevista para o dia 30 de junho aponta nesse sentido”. Os fatos – e certamente Ruy os acompanhou bem de perto – mostram que nas duas semanas que precederam a greve houve recuos claros e fortes de duas centrais que controlam setores relevantes para o sucesso da paralisação (transporte ferroviário, metrô, ônibus).  No caso do Metrô de São Paulo, por exemplo, o próprio PSOL se dividiu – e uma parte optou pela não adesão à greve. O mundo é um pouco mais cinzento.

De qualquer modo, não daria tanta importância a tais desacordos com os autores. São menores, em vista da mais do que relevante (e surpreendente) conclusão: “O país necessita de uma ‘saída portuguesa’. Precisa de uma geringonça”.

O que é a geringonça?

Para ver o tamanho da dificuldade e os caminhos tortuosos que ela nos indica, é preciso explicar ao leitor brasileiro o que quer dizer a “geringonça” portuguesa. Elisio Estanque, que viveu essa história, pode corrigir ou completar minha descrição.

A geringonça é, fundamentalmente, um acordo pelo qual duas organizações de esquerda bem “duras” (o PCP, de origem estalinista, e o Bloco, de raízes trotskistas) concordaram em apoiar um governo do PSP, uma centro-esquerda para lá de moderada. Afinal, o PSP fora, anteriormente, executor de políticas de “austeridade” neoliberais. E seus “barões” são claramente aparelhistas, fisiológicos. PCP e BE tinham 21% dos votos no parlamento. Com isso, se apoiassem o PSP (com 30%), este poderia formar o gabinete, isto é, o governo do país. Bom, um governo de coalizão? Não exatamente, porque PCP e BE não participam do gabinete, não indicam ministros, secretários, nada disso.

A geringonça, no plano do governo nacional, começou, de fato, com experimentos similares em governos locais, como em Lisboa. A geringonça foi uma decisão nada fácil para o BE, por exemplo. O partido tinha uma tradição de política bem à esquerda, não fazia acordos com partidos “reformistas” ou “social-liberais”. A decisão de ir para a geringonça não foi fácil e sem sequelas. E as políticas do governo geringonça estão longe de constituir um “novo projeto de desenvolvimento” ou uma ruptura com o capital. Contudo, com todas essas limitações, trouxeram ganhos significativos para os trabalhadores e recuperaram a qualidade das políticas públicas (saúde, educação, previdência). Uma geringonça para o Brasil, como querem os autores, deveria partir da avaliação dessa experiência, de suas premissas e de suas dificuldades.

Uma ideia no contrafluxo?

Como disse, creio que a ideia faz muito sentido. E, como disse, venho apontando isso faz tempo – com o pouco que minha voz pode ecoar. Mas esta ocorrência é surpreendente por vários motivos. Primeiro, porque introduz pelo menos uma dissonância (se não uma mudança de tom) no artigo – aquilo que vem antes enfraquece a proposta, quase a impede. Segundo, porque conflita com toda a trajetória dos grupos que os autores chamam para o acordo (sobretudo o grupo a que pertence Ruy, nem falar daquele que abandonou). O PSOL rejeitou até mesmo o apoio eleitoral do PT na segunda volta das eleições municipais, no Rio e em Belém (onde, aliás, aceitou e abraçou efusivamente a adesão de direitistas renomados, uma geringonça singular). Estaria agora disposto a um governo conjunto com o PT?

Mas vou um pouco adiante. Certa vez, em conversa, disse a um amigo português que o Bloco havia feito um acordo com um partido que está à direita do PT, eu diria mesmo que o PS português está mais próximo de um PMDB, pela fisiologia de boa parte de seus dirigentes e pelas políticas que executou quando governo. E as políticas do atual governo-geringonça são mais do que moderadas, são reformas pontuais num ajuste (a tal austeridade) que a direita lhe deixou como herança.

Dito isto, só me resta concordar com a conclusão, mas lembrar essas ressalvas para apontar as dificuldades. Um movimento dessa natureza – a confluência rumo a uma geringonça tropical – não provoca apenas “mau humor” em Lula, como vazou a mídia liberal. Sei (e os autores também) que gerou bem mais do que isso em boa parte do PSOL. São obstáculos a superar – e é bom reconhecer onde estão, não onde a nossa antiga crença nos diz que estão.

Braga e Estanque dão uma enorme contribuição a esse debate. É preciso que siga adiante.

Crédito da foto da página inicial: Movimento Que Se Lixe a Troika/Facebook

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