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Arrocho fiscal e arrocho ideológico: a censura à mídia crítica

Publicado na Carta Maior em 20-6-2016


No orçamento de 2016, a Secretaria de Comunicação do governo federal, a Secom, reservou ao conjunto da mídia progressista brasileira cerca de R$ 11,2 milhões do total destinado à publicidade pública (estatais, administração direta etc). O valor, repita-se, dividido entre toda a mídia progressista, equivale a 1% dos recursos direcionados em 2015, por exemplo, apenas à publicidade nas redes de televisão (mais de R$ 1,2 bilhão). Neste mês de junho, o golpe cortou esse 1%.

Não por economia. Para asfixiar ideias. Para assegurar a supremacia absoluta de uma visão de país que não representa todo o país e que nunca aceitou conviver com um projeto de extração popular, livremente  escolhido pelo voto majoritário. O valor da publicidade suprimida agora pela Secom era irrisório (0,6% em relação aos gastos totais de R$ 1,8 bi, incluindo-se outras mídias além da televisão). Foi exatamente essa a palavra –‘irrisório’–  usada pela ‘Folha’, em reportagem que noticiou a decisão (‘Temer corta R$ 11,2 mi em contratos de sites considerados pró-PT’; 14/06). Suprimir canais de expressão de um pedaço da opinião pública brasileira que compartilha um projeto de desenvolvimento distinto deste que agora se impõe à sociedade é o objetivo indisfarçável da asfixia publicitária. Há razões para a sofreguidão. A tentativa de dissimular o assalto ao poder em cruzada anticorrupção fracassou esfericamente.  Espraia-se a percepção de uma escória a serviço da plutocracia, que assaltou o poder com apoio cinicamente desvairado de um dispositivo midiático conservador que queimou de vez  as caravelas da credibilidade. O conjunto sinaliza a negação da democracia como ambiente para escrutinar os conflitos do desenvolvimento em nosso tempo. Uma determinação grosseira e unilateral submete o país à receita de um neoliberalismo fundamentalista, ilegítimo e incompatível com a natureza da Constituição vigente desde 1988. A decisão de asfixiar os canais de expressão do pensamento crítico ganha sentido nesse cenário de polarização extremista. A intolerância que saiu do ovo em meio à desordem neoliberal no mundo respira entre nós. Intolerante com as mulheres, os negros, os artistas, os intelectuais, os estudantes,os gays, as lésbicas, os sem-terra, os sem teto, o golpe também demoniza a opinião crítica veiculada pela mídia progressista. Meta e método se fundem em esférica coerência: a supressão dos direitos sociais e da soberania popular  não pode conviver com a diversidade de interesses  externada pela mídia progressista.

Ao arrocho fiscal impõem-se o arrocho ideológico. O estrangulamento financeiro da mídia crítica é a primeira volta na rosca desse garrote. O ataque à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e o desmonte anunciado da TV Brasil  são patas do mesmo monstro (veja nesta animação a importância da TV Brasil). Estamos diante de um bloco de interesses tão dissociado dos da maioria da nação que não pode conviver com a Constituição de 1988 sem desfigurá-la naquilo que tem de singular: ser a ‘lamparina dos desgraçados’, como a batizou Ulysses Guimarães, na descrição dos direitos sociais mínimos  incluídos.  Pelo mesmo motivo não pode conviver com a verdadeira liberdade de expressão, que só merece esse predicado se a diversidade e o contraditório desfrutarem de condições isonômicas de produção e difusão.

Está longe de ser o que acontece no Brasil.

Tradicionalmente abastardado por um sistema de comunicação dominado por cinco famílias, o discernimento popular está sendo violentado mais uma vez  pelo martelete de uma mídia que semeou, orientou e deu sustentação ao golpe em curso (veja a ótima exposição da jornalista Laura Capriglione sobre o assunto 

A sociedade é diversa. A sociedade não é a Globo.

A sociedade são os Jornalistas Livres, a Mídia Ninja, o Conversa Afiada, o Viomundo, o Vermelho, a Carta Capital, a TV Brasil, o ’24/7′, o Socialista Morena, o Dinheiro Vivo, a Rede Brasil Atual e tantos outros de igual importância e pertinência, ao lado dos quais se inclui Carta Maior.

A sociedade de uma nação em luta pelo desenvolvimento é diversa, contraditória e precisa ser plural nos seus canais de expressão. O oposto, portanto, da racionalidade financeira plana e lisa cujo ápice é o arrocho fiscal ora em curso, que reafirma a unicidade do privilégio plutocrático, incompatível com o investimento na escola, no SUS, na moradia popular, na cultura, na reforma agrária, na pesquisa, no patrimônio público e na soberania externa.

Existe uma opinião pública progressista no Brasil que se reafirma na urna desde 2002.

E de forma tão claramente anti-neoliberal que, não fosse por isso, o golpe não teria sido necessário. O país real ainda padece de um déficit brutal entre o que as urnas tem reclamado e o cotidiano da imensa maioria da sua população. Ainda assim, avanços ocorreram. A direita os enxergou. Não apenas na extensão modesta de sua vigência, mas no despertar de dinâmicas, possibilidades e forças por eles engendradas.   Na visão do golpe e de seu coral midiático, a disjuntiva colocada pela encruzilhada brasileira se resume a uma contabilidade fiscal: Estado mínimo ou caos. A obra de demolição que ergue tapumes asfixiantes em torno da Constituição não hesita na escolha. A escolha é  reduzir em 30% o tamanho do setor público, decepando do metabolismo constitucional seus braços sociais de maior igualdade e de soberania nacional.  É como se uma junta militar editasse sentenças de vida ou morte sobre o destino brasileiro.  A diferença é o fuzil; hoje seu nome é mídia; seu paiol, o mercado financeiro. Nunca a luta pela sociedade digna remeteu tão diretamente à necessidade de se exercer um maior controle democrático sobre o poder de Estado. E nunca como hoje o Estado esteve tão engessado por um poder prevalecente, quase integralmente subordinado a normas e agendas que o reduzem a pouco mais que uma anexo dos desígnios do capital financeiro. A política fiscal –a ferramenta que dá ao Estado o poder de ordenar o presente e induzir o futuro– é o canal estruturante do golpe. Através dela se exerce o sequestro da agenda do desenvolvimento, com o objetivo declarado de reduzir o gasto do Estado à mesma proporção vigente ao final do ciclo do PSDB no poder. A caçada diuturna à ‘gastança social’  –bordão tucano agora no poder–  visa manter a alavanca rentista como eixo de supremacia que assegura todos os demais interditos. Faz parte dessa coesão o silêncio de ouro do jornalismo ‘apartidário’: nenhuma palavra sobre a esterilização desconcertante de 9% do PIB – R$ 500 bilhões anuais em gastos com o juro da dívida pública. A camisa de força fiscal levará a sucessivas espirais de definhamento do investimento público e privado, enjaulando o país num círculo vicioso de irrupções episódicas de crescimento, arrocho permanente  e declínio estratégico. É essa a disjuntiva dentro da qual se debate a nação neste momento: repactuar democraticamente os conflitos do seu desenvolvimento ou dobrar-se a vinte anos de paz dos cemitérios? Desenvolvimento é transformação, é romper velhas estruturas e construir outras novas, ao mesmo tempo e com igual dificuldade.

A estabilidade de ferro pretendida pelos gestores do dinheiro gordo tem um alicerce oculto: o arrocho sobre a vida de milhões de famílias assalariadas. Três gestões petistas sucessivas souberam aproveitar atalhos para desmentir a fatalidade reafirmada em 500 anos de capitalismo excludente.

Com todos os erros, rendições e renúncias estratégicas (cuja fatura está sendo cobrada agora), o país mudou nos últimos 12 anos. Um dado resume todos os demais: o mercado de massa criado nesse período acoplou à economia brasileira um novo país, com peso e medida para credenciar-se ao G-20. Embora o dever de ofício midiático se esmere em negá-lo, todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar o salto de justiça social que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido. Dê-se a isso o nome técnico que for: o que se mira é a regressão destes doze anos. A asfixia imposta aos blogs e sites progressistas é parte indissociável dessa espiral, cuja viabilidade requer a mumificação do país num formol fiscal em que nada se move e as diferenças deixam de respirar.

O impulso que levou o golpe a bater de frente com o ambiente cultural, logo nos seus primeiros dias, remete a esse antagonismo.

Ao contrário do que ocorreu nos últimos doze anos, Brasília foi enlaçada por uma linha demarcatória de interesses estreitos demais para conviver com  a diversidade, seja ela artística, intelectual, censitária, racial ou sexual. A asfixia imposta à mídia progressista requer uma resposta a altura desse torniquete de múltiplas voltas. Parcerias contra a censura,  como propõe a campanha lançada por Carta Maior (saiba mais aqui) podem erguer  pontes de sobrevivência imediata ao conjunto de blogs e sites progressistas. Mas é preciso unir forças para ir além. A livre expressão da opinião crítica é indissociável da luta pelo desenvolvimento democrático do país e deve ser encampada por todos os partidos e frentes de luta contra o golpe. Faz parte desse direito o acesso legítimo à publicidade pública, em condições de existência  equivalentes às desfrutadas por  pequenas e micro empresas em outros  setores da economia. O longo ciclo de aperto fiscal e de silêncio contraditório, como preconiza o golpe, privará a sociedade do debate e dos investimentos necessários ao salto de infraestrutura e produtividade capaz de superar a encruzilhada brasileira atual. Sobrará a alternativa de um regime de força associado a uma dieta de arrocho sobre a renda real das famílias assalariadas, via supressão de poder de compra e liquidação de direitos. A Europa em carne viva de desemprego e estagnação — que enreda 122 milhões de cidadãos numa espiral de empobrecimento desde 2008 — é a vitrine mais vistosa dessa receita, segundo a qual, ter menos Estado redunda em uma sociedade melhor. Em um país de carências aviltantes, soa tão frágil e pouco crível que precisará se valer da asfixia total da opinião crítica para tentar subsistir.

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