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Aborto: breve manual do bom senso

Em uma sociedade extremamente dinâmica, com acesso a informação em larga escala e reflexos sociais divergentes em abundância, a velocidade com que assuntos vêm e vão em nossos círculos e redes sociais é sempre altíssima e sua rotatividade, por muitas vezes, faz com que tenhamos um compêndio de frases vazias e descartáveis utilizadas para contrapor temáticas quaisquer que sejam do desagrado de qualquer um. Deve-se notar, de qualquer forma, que a carga social e o peso relativo à saúde pública das mulheres brasileiras tira o tema do aborto desta perspectiva rotativa, mas, ainda que perene, sofre dos mesmos males argumentativos.

Pensando nisso, realizei um pequeno teste, requisitando a amigos que se dispusessem a enviar frases prontas que já escutaram acerca da prática do aborto, que eu me disporia a responder à luz do bom senso e do bom humor necessários para se viver em meio às tantas dificuldades impostas a nós diariamente por fontes quaisquer.

Apresento, então, as 16 frases que julguei darem o escopo mais abrangente possível a um assunto delicado e complexo que, no fim das contas, se condensa em respeito às mulheres.

“Você já nasceu, aí é fácil ser a favor do aborto”

Com a palavra, então, Marcelinho, o feto de três semanas que não tem papas na língua – literalmente. No entanto, crer que existe uma vontade insidiosa no feto de viver previamente ao desenvolvimento de um sistema central nervoso ou de qualquer sinal de consciência e cognição é botar fé demais no Marcelinho.

“Sou pró-vida sempre”

Você sabe quando existe cognição de vida e um sistema nervoso central que permita a um ser humano existir como vivo? Deveria saber. Gira entre o 1º e o 3º mês todo o processo de formação do sistema – não coincidentemente a escolha do limite de três meses de gestação para a prática ter sido o ponto abordado pela turma do STF.

“Usa contraceptivo, tem altas opções”

Você deveria assistir Friends, maneira bem didática de abordar esse assunto, mas já resumo a referência: na série, à ocorrência de uma gravidez inesperada e a priori indesejada, o pai constrói suas críticas ao departamento de reclamações de uma fábrica de camisinhas, no que ele descobre que sua efetividade gira em torno de 97%, assustando outros, inclusive, ao divulgar a informação. Fato é que não existe um contraceptivo 100% eficaz e a ocasião de uma gravidez pode vir, mesmo se utilizando de duas ou três formas diferentes. Apesar de, claro, estatisticamente ser mais difícil.

“Existem outras opções que não o aborto. Se não pode criar, pode doar, não precisa matar”

Nesse caso, tendo a crer que o entendimento da realidade da pessoa está se confundindo com um episódio de Chiquititas, pois há, obviamente, um desconhecimento cabal de como funciona o sistema adotivo brasileiro e das complexidades e burocracias pesadas que este envolve. Além disso, há uma escolha péssima de terminologia e um julgamento errôneo acerca da vontade que as pessoas têm em adotar uma criança – muito menor do que deveria ser, visto a robustez dos discursos pró-vida que assistimos  cotidianamente.

“Você tem que ir contra o aborto, pois caso contrário, será massa de manobra, já que existe um movimento pelos fundos com objetivos escusos e capitalistas para fazer com que as pessoas sejam feministas e a favor do aborto”

Saúde pública feminina agora é conspiração iluminatti capitalista (?) para levar as pessoas para o feminismo. Bem, eu acho que essa pessoa tropeçou nos próprios argumentos e está incentivando a galera a ser abortista, ao que tudo indica.

“Só concordo com aborto em caso de estupro, pois a mulher não pode olhar todo o dia para o fruto daquele monstro. Mas já no caso de safadeza, sem-vergonhice e irresponsabilidade de não utilizar um método, sou totalmente contra. Foi mulher pra fazer sexo e sentir prazer, agora seja também pra criar. Agora aguenta!”

Vou insistir na questão de assistir Friends mais uma vez e aproveitar para te informar que sexo é feito com duas ou mais pessoas e que a concepção em si envolve pelo menos um homem também e que filho não é um fardo para ser aguentado. Contraceptivos falham e não usar não é necessariamente safadeza, até pela extensão de métodos contraceptivos que existem, como você mesmo pontua.

“Não quer correr risco, não transa”

Pois muito bem, transar com você deve ser extremamente divertido e prazeroso, se você transasse, no caso. Celibato não deveria nem ser um tópico de debate, quem não quer, não gosta, é assexuado, ok, realmente não faz, agora utilizar isso como método não me parece razoável.

“É uma criança ali!!!!”

Não, não é. No dia que você ver um feto pedindo para colocar Galinha Pintadinha no Netflix a gente conversa. Para outras questões, volte ao segundo tópico abordado aqui neste artigo.

“Assassinar um feto consiste em negar-lhe a vida futura. Se ‘vida futura’ não é critério para legislação, não há sentido também em qualquer legislação voltada ao bem-estar das próximas gerações – como boa parte da legislação ambiental, por exemplo”

Isso é uma falácia comparativa das mais baixas, né, primeiramente pela disparidade entre manutenção ambiental com a manutenção de saúde da mulher e em segundo lugar pela distância conceitual que existe entre “vida futura” de um feto e vidas consolidadas e existentes no período futuro. Não confunda algo que não existe agora com algo que já existe no futuro e que possivelmente já existe agora. Você está traçando um paralelo que não tem vínculo real.

“Deus condena”

Esse seu deus aí condena inclusive aquela sua roupa que é 90% algodão e aquele bobó de camarão que você lançou no almoço de domingo com sua família tão cristã, então junte-se aos abortistas na fila para sentar no colinho do Papai do Chão, te garanto que vai ser legal, vamos cantar Motörhead e nos divertir bastante.

“Como pode não ser vida, se já se escuta as batidas de um coração??”

Rapaz, se tudo que pulsasse tivesse vida, te contar um negócio… E volte novamente ao segundo tópico.

“Só aborta quem odeia criança, ateu e feminista, pessoas de bem não matam o próprio filho”

Quem odeia mais criança: Quem aborta ou quem deixa nascer para depois abandonar? Da minha parte, acho que a única parcela de ódio que é latente a esse assunto vem dos ditos defensores da vida, que passam mais julgamento que seus próprios deuses em cima do assunto.

“Geme pra dar, chora pra tirar”

Bem, frente ao machismo e insensibilidade dessa colocação, eu tenho certeza que você precisa de uma aula de realidade, mas desejar uma gravidez indesejada a alguém próximo não é justo, então fique com os meus desejos sinceros de mudança através de um choque em si mesmo.

“É vida desde o momento da concepção! Não se pode matar um ser humano com qualquer idade que seja!”

Não, vida humana requisita consciência e sentimento. Por isso existe eutanásia pós-morte cerebral e em outros casos em que não há vínculo vital mais. Na concepção são amontoados de células sem nenhuma função vital ou cognitiva senão advindas diretamente da mulher que carrega.

“Se minha mãe abortasse, eu não existiria”

Nossa gente, que sorte, hein. Bem, existem várias formas de perceber esse paralelismo temporal, a primeira é que existem várias outras formas pelas quais você não teria chegado a existir, como, por exemplo, sua mãe não estar a fim de efetuar conjunção carnal com o seu pai, ou seu pai não conseguir atuar sexualmente, ou seu pai ejacular na face da sua mãe, ou sua mãe estar tomando pílula à época, ou seu pai usar camisinha. Em segundo lugar, a outra percepção, que é sobre a certeza de que foi a melhor opção mesmo ela não ter abortado. Eu não tenho tanta certeza assim não.

“Antes, bem antes de três meses, a criança no útero da mãe já faz até caretas. Não sou médico, não sou estudante de medicina; mas se tem uma coisa que o embrião humano não é é um ‘amontoado de células’ ou uma ‘bola de sangue’”

Bem, vou responder com suas próprias palavras. Você não é médico, não é estudante de medicina. E mesmo se fosse, afirmar algo assim sem nenhuma base ou fonte prova somente que você é, sim, um ignorante.

Eu não tenho útero, não posso elaborar sobre a moralidade ou não que leva à escolha de uma mulher por abortar, mas defendo o direito dela sobre seu próprio corpo e quero que ela tenha toda a assistência pública e privada possível para que essa decisão seja levada a cabo sem risco à sua própria vida. Aborto é questão de saúde pública feminina, pura e simplesmente, conjecturas morais e religiosas em cima do assunto apenas matam e lesam mais mulheres por aí e não impedem ninguém de realizar o ato – na verdade só incentivam. Portanto, deixe o bom senso prevalecer: mulheres abortam, cabe à sociedade escolher se elas devem viver ou morrer.

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