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  • Foto do escritorBruno Diniz

A valorização dos espaços e a habitação em uma cidade ‘neoliberal’


Mapa feito pela UFRGS mostra que os bairros mais vulneráveis socialmente de Porto Alegre são os que contam com menos infraestrutura urbana. Um desenvolvimento pautado exclusivamente pela dinâmica de oferta e demanda de imóveis tende a perpetuar essa situação de desigualdade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi estabelecida após a Segunda Guerra Mundial e adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), define os direitos básicos que visam a proporcionar uma vida humana digna, como o acesso a moradia, salubridade, justiça social e direito ao trabalho. Por sua lógica de funcionamento, a obtenção de um aspecto está estritamente ligada aos demais, sendo inadequado dissociá-los.


Mesmo não possuindo valor legal, o documento foi base para dois outros tratados com aplicabilidade jurídica adotados pela instituição, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além de influenciar no campo teórico as constituições das democracias modernas (MONTANER E MUXI, 2014).


No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001 asseguram juridicamente aos cidadãos brasileiros uma parcela dos direitos mencionados anteriormente.


Todavia, na prática, uma porção da população continua sem acesso a tais aspectos e aos serviços básicos de infraestrutura como o de água potável, coleta de esgoto, energia elétrica, rede pública de ensino e possibilidade de acesso ao mercado de trabalho formal.

Destaca-se o papel fundamental que o “endereço residencial” tem como a porta de entrada para se atingir essas prerrogativas, já que, para ter acesso a tais aspectos, é obrigatório possuir um endereço fixo.


De acordo com o mapa de vulnerabilidade social divulgado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é admissível notar que os bairros mais periféricos e que se encontram no limite da cidade de Porto Alegre (RS) são os que possuem os maiores índices de vulnerabilidade.


Além disso, realizando a comparação com o mapa de mesmo tema no que se refere a infraestrutura urbana, as manchas que representam os maiores índices estão novamente concentradas nas localidades mencionadas acima.


Isso se deve à lógica de funcionamento da cidade neoliberal (1), pois a concentração de investimento em infraestrutura e a qualificação dos espaços se dão de forma desigual, ou seja, geralmente, o investimento ocorre mais intensamente em bairros já valorizados, como o centro e regiões adjacentes, onde há a presença de infraestrutura.


Já nos bairros periféricos e desvalorizados, habitados pela população de baixa renda em razão do preço da terra, os recursos alocados são menores, o que agrava ainda mais a situação desses territórios. Sem grau suficiente de infraestrutura, o investimento para a sua implantação deve ser consideravelmente maior e o retorno financeiro baixo, comparado com o investimento em áreas já consolidadas da cidade.


Imagem 1: Índice de vulnerabilidade social. Fonte: Universidade Federal do R. Grande do Sul (2022)
Imagem2: Índice de vulnerabilidade em relação à infraestrutura urbana. Fonte: UFRGS (2002)

Realizando a leitura inversa, isto é, direcionando a análise para os bairros com baixos índices de vulnerabilidade social e com alta taxa de infraestrutura, torna-se concebível indicar que os locais que possuem essas características proporcionam uma qualidade de vida melhor aos cidadãos que neles residem.


Esse fato, no atual modelo econômico em que vivemos resulta na valorização econômica destas regiões, portanto, só é factível residir neles se o indivíduo ou grupo familiar possuir capital necessário para bancar o padrão de vida requerido.


Utilizando o mapa de valor do metro quadrado por bairro disponibilizado pelo Sindicado da Habitação (SECOVI RS), é possível observar tal constatação. Os bairros centrais possuem um valor de terra consideravelmente maior que os periféricos. Para efeito de comparação, um apartamento de 45 metros quadrados no Centro Histórico de Porto Alegre está estimado no valor de R$ 250.000,00, já uma residência localizada no bairro Restinga, com a mesma metragem, tem o valor de R$ 157.500,00, montante 37% menor que o primeiro imóvel (SECOVI, 2022).


Imagem3: Valor do metro quadrado por bairro. Fonte: Sindicato da Habitação (2022)

Dessa forma, se o acesso a moradia se pautar exclusivamente na dinâmica de oferta e demanda, a população pobre estará fadada a residir em bairros com altos índices de vulnerabilidade social, sem infraestrutura adequada e distantes das oportunidades de trabalho, lazer, cultura e serviços que os bairros centrais possuem, conforme retratado no artigo sobre mobilidade urbana.


Outro fator que agrega ainda mais complexidade a questão de moradia na capital gaúcha é que, de acordo com levantamento realizado pelo pesquisador André Augustin, do Observatório das Metrópoles de Porto Alegre, 30,5% das residências no Centro Histórico e 22,5% no 4º Distrito não estavam ocupadas no momento da coleta de dados para o Censo 2022. Os percentuais estão acima da média da cidade, de 18,7%.


Imagem4: Domicílios particulares desocupados em P. Alegre. Fonte: Observatório de Metrópoles (2022)

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou em junho de 2023 os dados do Censo que apontaram que Porto Alegre possuía 686.414 domicílios particulares permanentes em 2022. Destes, 558.151 estavam ocupados, 101.013 vagos e 27.250 eram de uso eventual.


Esse fato sugere que 14,7% dos domicílios estão totalmente desocupados e 4% são ocupados ocasionalmente, totalizando 18,7% não ocupados em toda a cidade. Ainda de acordo com a mesma fonte, a estimativa total do déficit habitacional da região metropolitana de Porto Alegre, e não somente da capital, é de 90 mil pessoas.


Considerando a cota de imóveis desocupados na capital de 101,013, esta seria suficiente para sanar todo o déficit da região. Portanto, a resolução do problema não está na construção de novas habitações, mas sim na redistribuição de moradia de acordo com a função social (2) da terra em virtude da propriedade privada ociosa (IBGE, 2023).


É notório o movimento da prefeitura em dobrar a população desses bairros por meio de incentivos ao setor imobiliário com a eliminação de altura máxima para novas construções, concessão de incentivos fiscais e retrofit de imóveis.


Todavia, tais incentivos não são direcionados para reverter a situação de “falta” de moradia na cidade, mas sim, para produzir habitações para uma parcela da sociedade com um poder econômico maior, gerando a valorização do bairro, seguida de sua gentrificação. Esta faz com que, em vez de atrair a população de baixa renda para esses bairros, faz-se o contrário, ou seja, expulsam-se as pessoas com menor poder aquisitivo devido ao aumento dos preços para a manutenção do padrão de vida.


Em virtude disso, o Centro Histórico e o 4° Distrito deveriam ser os primeiros bairros a receber um programa robusto de incentivo a promoção de habitação de interesse social, justamente por possuírem diversos imóveis ociosos, desocupados e subutilizados. Além disso, detêm infraestrutura adequada, estão próximos a oportunidades de emprego no mercado formal e de serviços, comércios e atividades culturais.


Especificamente no caso do 4° Distrito, os bairros que possuem um passado industrial têm em sua morfologia urbana a característica de dispor de grandes glebas remanescentes das fábricas e indústrias. Tal fator é uma oportunidade para democratizar o acesso à moradia e traçar um plano de renovação urbana, mas que coloque como ponto central a construção de uma cidade menos desigual e a valorização do bem material e cultural remanescente do passado do bairro.


Sendo assim, para viabilizar a proposta central de acabar com o déficit habitacional da cidade e proporcionar habitação de qualidade para todos os cidadãos, as seguintes diretrizes foram elencadas: desapropriação de imóveis ociosos, desocupados e subutilizados que possuem diversos débitos em impostos (como IPTU) junto à administração pública para a construção de HIS e HMP; delimitação de ZEIS3 em bairros centrais e em locais que já são ocupados pela população de baixa renda; melhorias urbanísticas, recuperação ambiental e regularização fundiária de assentamentos precários; incentivos fiscais, financeiros e de cota de construção para a iniciativa privada em relação ao desenvolvimento de tipologias de HIS; renovação urbana respeitando a paisagem urbana e morfologia dos bairros; retrofit de edifícios existentes.


Imagem5: Mapa de especialização das ações no território. Fonte: Acervo do autor; base: Google Earth

Importante destacar que tais premissas devem ser delimitadas via Plano Diretor Estratégico ou pela proposição de alguma zona de atuação especial, como, por exemplo, as Operações Urbanas realizadas na cidade de São Paulo, para ganhar legitimidade perante o funcionamento e planejamento do espaço urbano.


Todas as propostas até aqui delimitadas devem, em suma, respeitar a premissa de estruturar uma intervenção urbana levando em consideração o contexto social, histórico e cultural do território, pois a cidade é um artefato construído a partir do engenho humano, que através da sua materialidade se torna a depositária de memórias individuais e coletivas.


Esses vestígios da ação comunitária são expressão das características sociais a que esse grupo está submetido. Dessa forma, ao considerar a afirmação de Henri Lefebvre de que a cidade é uma projeção da sociedade sobre o terreno, é possível afirmar que o meio urbano está intrinsecamente ligado à forma de pensar e viver dos cidadãos. (GOTTDIENER, 1993).


Somando-se a essa narrativa o tempo histórico atual, o meio urbano pós-moderno, como debatido por Aldo Rossi e, posteriormente, por David Harvey, possui “um conceito de tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, um ‘palimpsesto’ de formas passadas superpostas umas às outras e uma colagem de usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros”.


Isso implica que as modificações propostas por determinada renovação urbana devem, necessariamente, lidar com o pré-existente, tornando o ato de planejar e projetar mais sofisticado, pois lidará não somente com a escala material da construção, mas também com a escala imaterial. É na escala imaterial onde conseguimos trazer sentido para as ações e podemos nos relacionar verdadeiramente com o outro.


Assim sendo, essa série de artigos pode não haver uma proposta material concreta, e nem é o objetivo aqui definido inicialmente, entretanto, possui como campo de ação o território imaterial e das ideias, para que possamos iniciar a caminhada de se pensar e, posteriormente, concretizar uma cidade melhor para todos que nela residem.

 

Bruno Diniz é arquiteto e urbanista formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. No meio acadêmico desenvolveu pesquisa científica voltada para a análise urbana do conjunto habitacional Jardim Edith via Mackpesquisa, além de ser um dos autores do livro “Sustentabilidade em Projetos para Urbanização de Assentamentos Precários no Brasil”. Atualmente, atua na consultoria de certificações para empreendimentos eficientes e sustentáveis.


Crédito da foto da página inicial: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil


Notas:

(1)   A doutrina do neoliberalismo, desenvolvida a partir da década de 1970, defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis, e ainda assim em um grau mínimo.

(2)   A função social da cidade é um princípio constitucional que integra o direito à propriedade dos imóveis urbanos na legislação brasileira. Este princípio propõe a priorização dos interesses coletivos em relação aos interesses individuais, tomando a cidade como um bem comum.

 

Bibliografia:

GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano, Trad. De Denise Rossato Agostinetti, São Paulo; Martins Fontes, 2014.


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico. 2023. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/porto-alegre/panorama. Acesso em: 07 ago. 2024.


LUÍS GOMES (Porto Alegre). Sul 21. Censo indica que Porto Alegre precisa planejar habitação de interesse social: especialistas avaliam impacto da redução populacional de porto alegre no planejamento urbano da cidade. Especialistas avaliam impacto da redução populacional de Porto Alegre no planejamento urbano da cidade. 2023. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/06/censo-indica-que-porto-alegre-precisa-planejar-habitacao-de-interesse-social/. Acesso em: 10 ago. 2024.


LUÍS GOMES (Porto Alegre). Sul 21. Censo 2022: Levantamento aponta que 30% dos imóveis do Centro estavam desocupados: observatório das metrópoles de porto alegre analisou dados divulgados pelo ibge por setor censitário. Observatório das Metrópoles de Porto Alegre analisou dados divulgados pelo IBGE por setor censitário. 2024. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2024/04/censo-2022-levantamento-aponta-que-30-dos-imoveis-do-centro-estavam-desocupados/. Acesso em: 09 ago. 2024.


MARX, Vanessa; FEDOZZI, Luciano Joel; CAMPOS, Heleniza Ávila. Reforma Urbana e Direito à Cidade. Porto Alegre: Observatório das Metrópoles, 2022. 260 p. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2023/03/Reforma-Urbana-e-Direito-a-Cidade_PORTO-ALEGRE-v2.pdf. Acesso em: 02 ago. 2024.


MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitetura e política: ensaios para mundo alternativos. Barcelona: G. Gili, Ltda, 2014.


SECOVI (Rio Grande do Sul). Venda de imóveis: veja o mapa com os bairros mais caros e os mais baratos de Porto Alegre: média do metro quadrado no três figueiras é de r$ 7.311,55, segundo levantamento do secovi-rs. Média do metro quadrado no Três Figueiras é de R$ 7.311,55, segundo levantamento do Secovi-RS. 2022. Disponível em: https://blog.secovirsagademi.com.br/venda-de-imoveis-veja-o-mapa-com-os-bairros-mais-caros-e-os-mais-baratos-de-porto-alegre/. Acesso em: 07 ago. 2024.


SÃO PAULO. Prefeitura de São Paulo. Gestão Urbana. Zona Especial de Interesse Social – ZEIS. 2014. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/zona-especial-de-interesse-social-zeis/. Acesso em: 02 ago. 2024.


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (Rio Grande do Sul). Atlas de Vulnerabilidade Social de Porto Alegre. Porto Alegre: Ufrgs, 2022. 50 p. Disponível em: https://issuu.com/maithewj/docs/atlas_de_vulnerabilidade_social_de_porto_alegre. Acesso em: 09 ago. 2024.


6° CONFERêNCIA DISTRITAL DAS CIDADES (São Paulo). O QUE É FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E DA PROPRIEDADE URBANA? São Paulo: 6° Conferência Distrital das Cidades, 2024. Disponível em: https://6conferenciadistritalcidades.seduh.df.gov.br/build/assets/funcao_social_da_cidade.7a13ddbe.pdf. Acesso em: 07 ago. 2024.

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