O domínio da frequência é artifício que a economia matemática utiliza para criar equivalentes de certeza sobre devir histórico sempre surpreendente. Com isso, a ansiedade por interpretações econômicas “únicas e verdadeiras” coloca boa parte dos economistas da tradição matemática no terreno do provisório, do precário, do contingente, porém com a empáfia de quem pretende “conhecer o desconhecido”.
Como tal, se colocam as teses ortodoxas de aumentos de juros, flexibilização do trabalho e cortes de despesas, afirmadas como únicas e verdadeiras perante uma sociedade que escolheu o contrário – a redução de juros, a canalização de gastos para educação e a defesa da renda e do emprego.
O objetivo do presente artigo é avaliar até que ponto o Brasil pode ser percebido internacionalmente como país mal gerido financeiramente, com excessivo endividamento e gastos públicos fora do controle.
Endividamento
O endividamento relevante a ser considerado na análise de integridade de um sistema financeiro é aquele que compreende não apenas os títulos públicos, mas a totalidade do crédito bancário. A razão é que os títulos públicos constituem-se apenas em fração da totalidade dos ativos e é o todo, e não a parte, que responde pelo grau de alavancagem / risco sistêmico em cada moeda.
Quando examinado no longo prazo (Figura 1), pode-se perceber que o aumento desenfreado no crédito, incluindo-se habitação e consumo de automóveis e eletrodomésticos, foi corresponsável pela eclosão da crise econômica de 1929. O movimento de destruição de crédito bancário privado que se seguiu produziu rastro de desemprego e desigualdade no centro capitalista. A tal ponto que o cálculo da guerra na Europa tornou-se positivo para países excêntricos sob liderança da Alemanha.
Observe-se que, nos EUA, já a partir de 1940, o Estado expandiu gastos fiscais, principalmente canalizados para pesquisa e desenvolvimento nas megacorporações do complexo industrial-militar-tecnológico em esforço de guerra. Ao término do conflito mundial, os bancos norte-americanos iniciaram trajetória de expansão da escala de crédito em dólares, incorporando-se à praça londrina, que passou a receber excedentes à vista em dólares provenientes de países produtores de petróleo, principalmente.
A partir de 1990, os bancos anglo-saxões passaram a desempenhar papel de protagonistas no processo de consolidação empresarial assim que assumiram o núcleo de poder nos EUA e na Inglaterra (privatizações, fusões e aquisições). O ambiente para consolidação empresarial foi construído a partir de enxugamento de gastos públicos e elevação das taxas de juros ao longo da década.
Esta “diplomacia do dólar” permitiu aos EUA construir ambiente de livre circulação dos capitais, beneficiando-se bancos com operações multimercados. Foram legitimados “paraísos fiscais”, cujo mérito parece ser o de permitir que se escape a qualquer “fisco”. Com isso, as casas financeiras internacionais passaram, cada uma a seu modo, a consolidar ativos, principalmente aqueles “off-balance“. O pleno conhecimento sobre as operações bancárias só se tornou disponível para a administração dos bancos, abrindo-se margens para manipulação e fraude.
Em 2008 eclodiu crise financeira comparável à ocorrida em 1930. Comparável pelo esforço de destruição de crédito bancário que parece apenas ter se iniciado na conjuntura dos fatos.
A resposta dos EUA, antes e agora, foi a de aumentar gastos públicos como medida de contenção do impacto negativo sobre renda e emprego. Não obstante, o crédito total em dólares vem sendo destruído, o que implica na não renovação de créditos a empresas e restrições ao financiamento do consumo e do investimento.
Em síntese, o excesso de endividamento bancário norte-americano tem induzido processo de destruição de crédito que, por sua vez, se reverte em restrições para que bancos locais passem a tomar linhas em dólares.
Ou seja, a despeito do relativamente baixo endividamento bancário no Brasil, a restrição de linhas em dólares impõe limitações para o consumo e o investimento no País. Para que se possa haver contração dos balanços em reais de instituições financeiras, a expansão da dívida pública deve experimentar processo de encolhimento também. Ao menos na vontade dos interventores financeiros.
Superávit fiscal
A imposição de redução da dívida pública não decorre de estratégia brasileira. Antes, coloca-se como imposição por interesses financeiros internacionais que preferem a liquidez e o curto prazo em seus balanços consolidados desde a eclosão da crise financeira em 2008.
Conforme se pode perceber na análise da Figura 2, a deterioração das contas públicas nos EUA correspondeu ao pronto e tempestivo “socorro financeiro e fiscal” dado pelo Estado aos empresários do setor automobilístico e banqueiros após 2008, principalmente.
Repare-se que boa parte da expansão fiscal norte-americana desde 2008 foi espelhada pela Inglaterra, pressionada pelos desdobramentos da crise financeira sobre a banca. Seguindo-se a este movimento, diversos países passaram a comprometer vultosos recursos orçamentários para aqueles negócios tidos como estratégicos em cada país. Em comum, o setor bancário.
O esforço de geração de superávit fiscal se propõe a reduzir o crescimento da dívida pública no Brasil. No entanto, a visão de curto prazo desconsidera os encadeamentos entre gastos e rendas (princípio da demanda efetiva) que levam, indiscutivelmente, a quedas na arrecadação à frente. Com isso, aumentou-se no País a alíquota sobre grupos sociais vulneráveis (aposentados, trabalhadores, empresas pequenas etc.) até o limite.
Com base nesta relação circular perversa, espera-se que cortes em gastos públicos impliquem retrocesso no processo de distribuição de riqueza, principalmente nas regiões menos favorecidas, onde se observaram os maiores progressos (cidades pequenas e médias, regiões Norte e Nordeste).
A formação da dívida, por sua vez, decorre da necessidade de financiamento dos gastos fiscais e de operações financeiras do Banco Central denominadas por esterilização. Cada vez que 1 dólar entra no Brasil, o Banco Central entrega o câmbio correspondente em reais. De maneira a não expandir a base monetária, o Banco Central lança um título de dívida no valor em reais equivalentes a 1 dólar.
Com isso, “enxuga” reais hoje e os “transporta” para o futuro, acrescido de juros. Ou seja, quando o capital financeiro entra no País atrás de ganhos de curto prazo, nós brasileiros temos que pagar impostos para evitar que esta entrada nos prejudique? A resposta é sim. Durante a década de 1990 nós brasileiros contraímos boa parte da dívida em função de esterilização para que investidores estrangeiros acumulassem no País. Entre 1995 e 2002, a dívida pública mais que duplicou, adicionando-se cerca de R$ 700 bilhões ao estoque de R$ 208 bilhões em 1995 (29,54% do PIB em 1995 para 60,38% do PIB em 2002).
Em síntese, o esforço fiscal brasileiro se insere em ambiente de disciplina imposto pelos bancos internacionais, pressionados pelo excessivo endividamento, o que parece justificar a intervenção como “condutores” da política econômica. Pode-se afirmar que o Brasil não possui excesso de endividamento e nem tampouco apresenta qualquer má gestão de recursos públicos.
O que ocorre é a constatação de que não há autonomia para a condução soberana das estratégias do País para enfrentamento da crise. Ao contrário, o sucesso brasileiro com a preservação do emprego e da renda tem suscitado rivalidade internacional, impondo-se ao País modelo conservador já em curso na Europa desde antes da eclosão da crise.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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