Ex-secretário de Vias Públicas e de Obras da prefeitura de São Paulo na administração de Luiza Erundina (1989-1992), Delmar Mattes não poupa críticas: “A atitude do governo do Estado e da Sabesp tem sido de total prepotência, evidenciada pela falta de transparência e não discussão das medidas apresentadas por vários órgãos e entidades da sociedade civil, diante da gravidade do problema e da possibilidade de um colapso do abastecimento de água.”
Mattes defende a adoção do racionamento como única forma de evitar um colapso no abastecimento para a maioria dos municípios de São Paulo. Em seu entender, as medidas adotadas pelo Estado são insuficientes e não dão maior segurança para enfrentar a crise. Além disso, segundo ele, a falta de chuvas não pode ser considerada a única culpada:
“A Sabesp é uma empresa de economia mista controlada pelo governo de São Paulo, com a atribuição de assegurar o abastecimento de água. Nos últimos anos, ela abandonou a sua função pública e se mercantilizou. Com isso, a lucratividade passou a ser o seu maior objetivo.”
Confira a entrevista, concedida a Joel dos Santos Guimarães:
A crise da falta de água nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas é maior que a falta de chuva?
Mattes – A pergunta levanta uma questão extremamente importante. Entendo que para enfrentar o problema é necessário que se uma adote uma estratégia que estabeleça uma política de recursos hídricos, que leve em consideração o que vem ocorrendo nas regiões de São Paulo e Campinas e outras cidades intensamente urbanizadas do País.
E o que está acontecendo?
Mattes – De um lado, temos uma abundância de água visível nas intensas inundações nas áreas urbanas e, de outro, uma escassez de recursos hídricos, como está acontecendo nos dias de hoje. Essa contradição, resultante, principalmente, das mudanças climáticas globais, e dos efeitos das “ilhas de calor”, exige a implantação de políticas adaptativas de curto, médio e longo prazo.
E o que fazer?
Mattes – A busca do equilíbrio entre falta e excesso de água envolve medidas complexas destinadas a enfrentar o passivo ambiental criado durante as últimas décadas e formas de aproveitar a quantidade de água acumulada nas áreas urbanas para usos não potáveis.
Outras regiões também estão sofrendo com a falta de água? Quais?
Mattes – Desconheço dados fornecidos pela Sabesp. Esse órgão deve, certamente, possuir uma relação completa e atualizada da falta d’água nos 366 municípios por ela operados no Estado de São Paulo e outras unidades fora do seu sistema. Mas acredito que todos esses municípios vêm sofrendo com a crise, em maior ou menor gravidade. No entanto, sem dúvida, os municípios abastecidos pelo sistema Cantareira são os mais afetados.
A falta de água em outras regiões pode chegar à mesma proporção que a do sistema Cantareira?
Mattes – Sim. A crise só tende a se agravar, muito mais pela omissão e pelas medidas equivocadas tomadas pela Sabesp e o governo do PSDB. Vale lembrar que mais recentemente outros reservatórios que abastecem a Grande São Paulo, como os localizados no Alto Tietê, também estão sob situação crítica de armazenamento de água, diminuindo a sua capacidade de contribuir com o abastecimento da região.
A falta de água pode ser considerada uma tragédia anunciada?
Mattes – Basta dizer que relatórios e estudos realizados para os Comitês de Bacia (constituídos por representantes de órgãos estaduais, municipais e representantes da sociedade civil, criados para equacionar os conflitos pelo uso da água) já apontavam, desde 2004, o risco de desabastecimento nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas, caso sofrêssemos uma situação de falta de chuvas semelhante à atual.
É preciso deixar claro que, independentemente da atual estiagem prolongada, nos últimos anos, o consumo de água de todas as duas macrorregiões vem aumentando, enquanto que a oferta não acompanha essa demanda. Essa diferença entre oferta e consumo vinha aumentando cada vez mais e era equacionada quando ocorriam chuvas intensas na região, especialmente na bacia do Cantareira. Bastava uma estiagem para criar uma crise de abastecimento.
Por quê?
Mattes – É que o sistema vem operando sem capacidade de atendimento pleno e sem margem de segurança. Isso explica a falta de água em bairros periféricos da região metropolitana de São Paulo.
Pelo que o senhor afirma, está faltando é planejamento na gestão dos sistemas de abastecimento de água da Sabesp.
Mattes – Sim. Pois os sistemas de abastecimento devem, por segurança, prever fatores cíclicos, como as estiagens acentuadas, uma vez que elas podem ocorrer com relativa frequência. Além disso, a própria natureza já deu o seu alerta. Em 2003 tivemos uma estiagem acentuada que não foi considerada nos critérios de planejamento.
Quais são a atitude e as políticas adotadas pelo governo do Estado e a Sabesp nestes últimos anos?
Mattes – A atitude do governo do PSDB e da Sabesp tem sido de total prepotência, evidenciada pela falta de transparência e não discussão das medidas apresentadas por vários órgãos e entidades da sociedade civil diante da gravidade do problema e da possibilidade de um colapso do abastecimento de água.
Até que ponto o modelo de gestão que vem sendo adotado pela Sabesp nos últimos é responsável por essa situação?
Mattes – A Sabesp é uma empresa de economia mista controlada pelo governo de São Paulo, com a atribuição de assegurar o abastecimento de água. Nos últimos anos, ela abandonou a sua função pública. A partir de 2002 lançou ações negociadas na Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo) e em seguida na Bolsa de Nova York, além de se dedicar também à prestação de outros serviços, como limpeza urbana, resíduos sólidos, águas pluviais e energia, e assumir a participação e controle de capital com outras empresas, formando subsidiárias nacionais e internacionais.
O senhor está dizendo que a Sabesp mudou o seu perfil?
Mattes – Sim, ela se mercantilizou. Com isso, a lucratividade passou a ser o seu maior objetivo, também obtida com o fornecimento de água em quantidades cada vez maiores, cobrando tarifas vantajosas, mesmo com serviços de esgotamento que não são em grande parte prestados. Essas políticas privatizantes são totalmente incompatíveis com um tratamento da água como um bem público e recurso vital para a população.
O senhor pode citar um exemplo?
Mattes – A necessidade urgente de um programa de racionamento vem sendo sugerida há meses, mas não está sendo levada em conta pela Sabesp. No entanto, no lugar do racionamento, o governo lançou uma campanha para a população economizar água, mediante um desconto de 30% no valor total da conta para aqueles que reduzissem o consumo a partir de 20%. Em seguida, passou a retirar água abaixo do nível de captação normal do reservatório Cantareira, o chamado volume morto, e transferir água de outros sistemas, como o Alto Tietê e Guarapiranga, para os consumidores abastecidos pelo sistema Cantareira.
Essas medidas pelo menos contribuíram para amenizar o problema?
Mattes – Elas são totalmente insuficientes e não dão maior segurança para enfrentar a crise. Além disso, elas obedecem a uma orientação social e ambiental inaceitável.
Por quê?
Mattes – O bônus de desconto destinado a uma redução do consumo de água terá mais impacto entre os pequenos consumidores, ou seja, a população de baixa renda, pois a parcela da sociedade com maior poder aquisitivo, em geral, não se importa em pagar mais pela água. Ou seja, trata-se de mais uma medida incidente sobre os mais pobres. Por outro lado, a captação no volume morto, que deveria ser a última alternativa a ser adotada, foi a primeira opção assumida.
Pela sua previsão, no curto ou médio prazo, a água vai literalmente deixar de pingar nas torneiras das casas e também em toda cadeia produtiva do Estado?
Mattes – Se as chuvas que o governo do Estado está apostando para o próximo verão não vierem, não existirão alternativas para enfrentar a crise e teremos um colapso total no sistema de abastecimento. É importante lembrar que a água do volume morto é de qualidade inferior, com tendência a piorar na medida em que se avança na profundidade do reservatório.
A falta de água já afeta as atividades econômicas?
Mattes – Segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), realizado em maio passado, foram fechados até aquela época mais de 3 mil empregos devido à falta d’água, na região da Bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí (a região mais prejudicada). O desemprego foi provocado tanto pela redução do ritmo de produção como pela queda da produtividade das indústrias. E o pior é que esse quadro só tende piorar, assumindo proporção mais grave com a possibilidade de desabastecimento na região metropolitana de São Paulo.
O racionamento se faz necessário?
Mattes – Sem dúvida, o racionamento já deveria ter sido implantado no início deste ano. Cabe lembrar que a Agência Nacional de Águas (ANA) já havia recomendado a sua adoção em janeiro passado como forma de evitar o colapso do Sistema Cantareira, e recentemente o próprio Ministério Público. O racionamento é uma necessidade emergencial vital para permitir um enfrentamento organizado e menos danoso dos efeitos da crise de abastecimento de água.
No entanto, o governo do Estado se recusa a adotar o racionamento. Por quê?
Mattes – O governador Geraldo Alckmin não quer implantá-lo com receio de sofrer um desgaste político que pode vir a prejudicá-lo na campanha para a sua reeleição.
Se nada for feito, existe mesmo o risco de São Paulo ficar sem água a partir de outubro? Quem vai pagar a conta? É possível reverter esse quadro? Como?
Mattes – Contrariando a Sabesp, segundo alguns meteorologistas e o Instituto Nacional de Meteorologia, as previsões para a ocorrência de precipitações na região Sudeste a partir da próxima estação chuvosa não são seguras, podendo ocorrer o contrário do que a empresa está apostando. Neste caso, podemos ter um prolongamento da estiagem com consequências desastrosas.
De qualquer modo, a crise poderá se estender por mais dois anos ou até por um período maior, já que o Sistema Cantareira demorará tempo para se recuperar e os outros reservatórios que abastecem as duas regiões metropolitanas também não estão na sua capacidade plena. O risco de um colapso total no sistema de abastecimento de água nas duas regiões metropolitanas é enorme. Previsões de clima para um período distante sempre são difíceis de serem realizadas, ou seja, possuem muitas incertezas. No entanto, a cobrança da sociedade se dará pelas políticas equivocadas aplicadas e pelas medidas emergenciais irresponsáveis adotadas, inclusive pelos prejuízos que poderão advir.
Qual o legado que essa crise da água deixa?
Mattes – Considerando a gravidade de todas as questões apontadas, fica claramente evidenciado que é necessário e extremamente importante que aproveitemos a oportunidade que a crise está nos oferecendo para fazer uma avaliação mais profunda de todas as políticas relacionadas aos recursos hídricos. E considerando também a dimensão desses problemas e a necessidade de envolvimento das representações da população na sua elaboração, é imprescindível criarmos um Fórum Regional das Águas. Esse fórum teria a missão de acompanhar e fiscalizar o programa de racionamento e ao mesmo tempo desenvolver propostas, medidas e iniciativas de curto e longo prazo, capazes de promover uma profunda mudança nas políticas atuais.
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