Dias atrás foi divulgado o relatório do banco Credit Suisse acerca da distribuição da riqueza global. Constatou-se que 1% dos mais ricos detém 48% da riqueza global.
Na esteira desta divulgação, publica-se nova entrevista com Thomas Piketty, autor de“O Capital no Século 21”, tanto para reafirmar a brutal concentração da riqueza, quanto para defender medidas para “minimizar” essas disparidades, dentre as quais a tributação progressiva das rendas elevadas.
No livro do economista francês, argumenta-se que desde meados dos anos de 1980, a concentração da riqueza se elevou porque a diferença entre a taxa de crescimento da rentabilidade do capital frente à taxa de crescimento da economia ampliou.
Isso significa dizer que as “rendas” obtidas a partir dos direitos sobre a propriedade – que vão de papéis transacionáveis na bolsa de valores até imóveis, passando pela propriedade das firmas – foram mais elevados do que os rendimentos obtidos pelos agentes participantes na produção de bens e serviços.
Neste ponto, o autor indica outro agravante do problema: o aumento das disparidades salariais no interior das firmas. A origem desta elevada diferença está na determinação de o salário dos CEO’s estar vinculado à rentabilidade dos papéis das empresas na bolsa de valores.
Para o restante dos trabalhadores, a elevação do salário permaneceu atrelada ao crescimento da economia, contribuindo para ampliar a concentração da riqueza.
Ao identificar a magnitude do fenômeno da concentração da riqueza, estes trabalhos têm o mérito de colocar em pauta o debate da riqueza e, assim, do seu contraponto: a pobreza. Para refletir sobre a atualidade desse debate, coloca-se a seguinte questão: mas afinal, o que se compreende por riqueza?
A riqueza, tanto no relatório quanto no livro, é medida por meio do conceito de capital. Na ciência econômica, capital é identificado como patrimônio capaz de gerar rendimentos futuros, medido em termos monetários, de modo que a discussão acerca da riqueza passa a ser a melhor maneira de se gerenciar o capital a fim de proporcionar renda aos agentes econômicos no montante adequado ao seu “bem- estar”.
Por contraponto, a pobreza fica compreendida enquanto “insuficiência de renda” para se atingir um mínimo de bem-estar, dado pela “linha de pobreza”, sendo a investigação deste fenômeno reduzida a identificar o conjunto de pobres em dada economia, com vistas a fomentar uma política de incentivo à geração de renda ou de transferência de renda, cujo resultado é alçar os pobres ao patamar superior a esta linha.
Em ambos os casos, o critério definidor da riqueza e da pobreza é tomado diretamente do cotidiano: a ausência ou presença do dinheiro ou dos meios para se gerar dinheiro. Não se questiona o porquê dos conceitos de riqueza e pobreza serem equacionados desse modo.
A ausência deste questionamento é compreensível diante da posição da ciência econômica quanto à supremacia da atual sociedade, explicada pela limitação do agir humano ao imediatamente dado, restando aos humanos à reprodução ampliada do existente, se possível, contendo as “mazelas sociais”.
Escapam deste quadro analítico as consequências, para as relações humanas, do atual processo de produção da vida ser norteado pela produção crescente de “coisas de valor” e da redução dos diversos momentos de nossas vidas a essas coisas.
A limitação da vida humana à produção crescente de produtos vendáveis faz do dinheiro não só o receptáculo das nossas qualidades – por simbolizar a possibilidade de alcançar os produtos da atividade humana (esta reduzida à produção de coisas) –, como também aparece aos humanos enquanto detentor destas qualidades.
No limite, nós, humanos, não temos qualidade alguma, a não ser, a estabelecida pelo tamanho de nossas “carteiras”, estejam estas no bolso ou na bolsa (de valores).
Ao destituir os humanos de suas próprias qualidades, a produção da vida norteada pela produção crescente de “coisas de valor” estabelece um sentido estreito para a existência humana: após o trabalho, resta o consumo.
A consequência imediata deste estreitamento, que Adam Smith nomeou “embotamento indolente” dos humanos, pode ser constatada no ato de relegar para a transcendência a realização humana ou na atribuição à providência divina dos “avanços” conquistados no interior das relações estreitas dessa sociedade.
Esse estreitar da vida humana, ou pobreza, está em patente oposição com o potencial atingido pela atividade humana, constatável (embora não redutível) na capacidade humana de produzir coisas dos mais variados tipos.
Essa potência, que se apresenta na forma de produção de muitas coisas, espelha, no fundo, a existência de condições adequadas para o livre desenvolvimento da individualidade humana, ou se quiser, da riqueza.
Isso significa dizer: mais do que discutir o acesso aos dados sobre o volume monetário detido por cada um e a produção destas disparidades na propriedade do capital, a discussão da riqueza deve reposicionar este conceito.
Reposicioná-lo significa compreender tanto o quadro real das potencialidades humanas e a dimensão do quão longe destas potencialidades se está, quanto a necessidade de transformação da maneira de produzir a vida enquanto passo necessário para se alcançar a riqueza, ao contrário de “dividir” os produtos da atual maneira de produzir nossa existência.
Se a constatação acima faz sentido, a luta política deve se dirigir para a transformação da estrutura do trabalho na sociedade atual e sua posição no estabelecimento das nossas relações.
Tal objetivo passa, de forma mais imediata, pela redução da jornada de trabalho (sem redução dos rendimentos e direitos), diminuição do período de vida dedicado ao trabalho e, como provedor destes dois, a promoção de uma aparelhagem pública que diminua a posição do trabalho enquanto meio de vida dos sujeitos.
Àqueles que dizem serem estas medidas impossíveis por falta de “recursos”, os dois estudos acima são dignos em notar que nada mais falacioso do que esta fala.
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