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A ressurreição de Auro de Moura Andrade

Publicado em Fundação Perseu Abramo em 31-8-2016


É com pesar que registro o passamento, nesses idos de agosto, do senador Cristovam Buarque, eleito pelo PDT do Distrito Federal e atualmente alojado no PPS. Por faltar-lhe a coragem política para filiar-se direta e francamente ao PSDB, preferiu acomodar-se numa linha auxiliar. Como a vida não deixa as coisas pela metade, é meu dever registrar também, neste país que parece condenado a andar em círculos, ao longo de sua História, a ressurreição do senador Auro de Moura Andrade.

Para os mais jovens e para os que não se recordam dele, o referido senador paulista foi quem atrasou os ponteiros do relógio do Senado da República, na madrugada de 2 de abril e declarou a vacância da Presidência da República, sob os protestos de Tancredo Neves (Canalha! Canalha! Bradou Tancredo, então Líder do Governo, num tempo em que os parlamentares chamavam essas pessoas pelo seu verdadeiro nome) quando o Presidente João Goulart ainda se encontrava em Porto Alegre, portanto em território nacional. Dessa forma, Auro de Moura Andrade conferiu aparência de legalidade ao golpe de Estado desferido pelos generais no dia anterior (1º de abril de 1964). Naquele momento como hoje, os golpistas se esmeram em polir a máscara do golpe com os mesmos e surrados argumentos do correto funcionamento das instituições, da defesa da moralidade e da democracia.

Esse fato histórico foi lembrado de forma eloquente pelo senador Roberto Requião no seu pronunciamento durante o julgamento da Presidenta Dilma, na tarde de 29 de agosto. Mirava o senador paranaense duas figuras menores flagradas em seu desconforto pelas câmeras da TV Senado, que representam – palidamente – Minas Gerais. Não honram nem Minas nem a figura que Tancredo protagonizou naquele momento.

Imaginava o senador, Moura Andrade com aquele gesto, poder voltar atrás os ponteiros da História. A História se vingou dele, condenando-o ao justo esquecimento. Só em 21 de novembro de 2013 o Congresso Nacional anulou a sessão indigna que decretou a vacância da Presidência da República e selou a legalização do golpe, com a anuência do STF. Seu presidente, Álvaro Ribeiro da Costa, numa sessão fantasmagórica, deu posse a Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara, cuja presença figurativa na Presidência duraria poucos dias para ceder lugar ao primeiro ditador, o general Castelo Branco.

A sociedade brasileira levaria vinte e um anos de lutas contra a tirania que se estabeleceu a partir daquele gesto, para derrotar os generais e empresários que violaram a Constituição de 1946 e – rejeitados nas urnas – se impuseram pela força dos canhões. Num gesto que repetia a sequência de golpes que ocorreram desde a proclamação da república. Reveladora da solidez da cultura política oligárquica e do profundo desprezo que as elites brasileiras nutrem pelo exercício da democracia. O sonho dessas elites herdeiras da exploração do trabalho escravo é uma sociedade tutelada pelos seus luminares, uma democracia sem voto. Uma democracia sem povo. O que assistimos hoje é, mais uma vez, a insistência no caminho do atalho, para  recuperar o mando secular dos senhores de engenho.

Quantos anos o Brasil levará para anular a farsa desse processo de impedimento sem crime de responsabilidade da presidenta Dilma Rousseff, exposto agora aos olhos do mundo? Quanto tempo levará para punir os usurpadores que violaram a soberania popular expressa por 54 milhões de votos, os que feriram de morte a Constituição de 1988? E revelam todo o seu cinismo quando afirmam que ela não cabe no Orçamento? Quanto tempo levaremos para desmascarar o conluio e a conspiração que levaram ao afastamento de uma Presidenta eleita pelo voto popular e preparam o retorno do embuste da eleição indireta?

O senador Auro de Moura Andrade tenta se levantar do chão dos mortos e escapar do ostracismo nessa segunda década do século 21, como resultado do conluio entre um Parlamento sem moral, um Judiciário partidarizado e uma mídia criminosamente cartelizada anular todos os avanços sociais, econômicos e culturais obtidos pelos setores populares, nos últimos treze anos, durante os governos Lula e Dilma.

Os senadores dispostos a incorporar o defunto e infundir nele um sopro de vida serão percebidos a partir dos idos de agosto de 2016 como mortos-vivos pelos corredores. Alcançarão apenas o duvidoso e passageiro êxito de converterem-se a si próprios no cadáver político do seu inspirador. Mais cedo do que imaginam encontrarão uma sociedade capaz de reagir, por meio da desobediência civil, ao atropelo da soberania popular, ao saque dos direitos dos trabalhadores e à pilhagem dos recursos naturais do país – particularmente os recursos do pré-sal – para oferecê-los criminosamente aos interesses estrangeiros. Mais cedo do que imaginam a História – ela é implacável – vai voltar-lhes as costas e pulverizá-los na cinza do esquecimento.

Pedro Tierra é poeta. Presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

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