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A massa, as narrativas conservadoras e suas vítimas

A massa e a política

Seja pela violência de alguns atos, seja pela rápida adesão de grande número de indivíduos aos diagnósticos do senso comum, não há dúvida de que o que assistimos atualmente na esfera política é um fenômeno de massas. E se o assunto é a massa e a política, pode ter alguma serventia partir do diagnóstico de Sigmund Freud sobre o tema.

No seu livro “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud parte da descrição da alma coletiva feita antes por Le Bon para, na sequência, acrescentar suas contribuições. Nessa descrição, Freud ressalta já de início que o indivíduo imerso na massa pensa e age de modo muito diferente do que faria isoladamente, pois nela a alma coletiva liberta os indivíduos da repressão de seus instintos de violência.

Com efeito, na massa o ego é transferido para algo externo ao sujeito, o que dá origem a uma tendência de transformar imediatamente em atos as ideias sugeridas. Nesse ambiente ocorre também a exacerbação da impetuosidade do indivíduo pela reciprocidade dos demais, predomina o contágio mental e, como ocorre num sujeito hipnotizado, a sugestionabilidade toma o lugar do espírito crítico.

Em suma, na massa os indivíduos não são mais os mesmos, como bem ilustra o comportamento violento, xenófobo ou racista de um jovem “do bem” imerso, por exemplo, numa manifestação política incitada por um clima de ódio, numa discussão em redes sociais ou numa torcida organizada de futebol num dia de clássico.

A história mostra também que a massa pode ser força revolucionária e propulsora de grandes mudanças sociais, mas tomando atenção ao que disse Freud, é preciso cuidado. Afinal, muitas transformações impulsionadas pela massa vão no sentido oposto ao da civilidade e da solidariedade. Que o diga Hanna Arendt, que estudou, entre outros, o tema do papel das massas na ascensão do nazismo.

Mas como é possível influenciar as massas? Ainda segundo Le Bon e Freud, uma vez que as massas são inclinadas a todos os extremos, quem quiser influir sobre elas não necessita medir logicamente os argumentos. Ao contrário, basta “pintar as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa. Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso e tem consciência da sua enorme força, ela é, ao mesmo tempo, intolerante e crente na autoridade (…), inteiramente conservadora e tem ilimitada reverência pela tradição.” E isso tudo ocorre independentemente da escolaridade, da inteligência, da condição social de seus membros ou dos vieses ideológicos do momento, ora mais inclinados à direta, ora mais apegados a um dogmatismo de esquerda.

Em suma, esse é nosso ponto de partida: dado que vivemos numa sociedade de massas, só é possível ter uma visão abrangente do que se passa na política se compreendermos o processo de construção das narrativas que formam, gradualmente, o senso comum da massa. Aqui certamente não estamos nos concentrando nos comportamentos esporádicos dos sujeitos imersos física e momentaneamente nas aglomerações, mas, fundamentalmente, nas formas de interpretação da realidade política e social que têm validade e permanência para além da formação efêmera dessas aglomerações.

Dito em outras palavras, interessa-nos aqui muito mais a chamada cultura de massas e seu papel na realidade política brasileira. Nesse sentido, se desejamos atentar para a adesão de grande contingente de indivíduos a certas narrativas, certamente devemos considerar também alguns meandros da nossa história recente, a ideologia dominante, a predominância de certo conjunto de valores, a forte concentração dos meios de comunicação e, finalmente, a crise estrutural do nosso sistema educacional (na sua incapacidade de produzir cidadãos críticos e conhecedores da complexa realidade).

Em síntese, esses são ao nosso juízo os ingredientes decisivos na construção das narrativas e interpretações hegemônicas da realidade numa sociedade de massas como a brasileira.

Ideologia liberal e narrativas hegemônicas

Dando mais um passo no exame desses ingredientes, importa sublinhar algumas questões sobre a ideologia e os valores dominantes para destacar sua importância nessa trama. Nesse sentido, não há como negligenciar o papel crucial da ideologia individualista apoiada no utilitarismo e no liberalismo econômico na construção das narrativas dominantes na atualidade brasileira.

Aqui não se trata apenas de apontar a sintonia do utilitarismo e da visão econômica liberal   ̶ segundo a qual cada agente receberia a justa retribuição pelo seu esforço num mercado autorregulado – com a crescente desmoralização e demonização do Estado, “ente corrupto e fonte dos males que minam as iniciativas dos empreendedores e a justa repartição dos ganhos”. Trata-se também de frisar que, sob essa ideologia, esse diagnóstico se fortalece na seleção parcial dos aspectos da realidade que mais se coadunam com a interpretação que os controladores dos meios de comunicação de massa pretendem tornar hegemônica.

E acerca dessa realidade também não há como negar: os inúmeros maus exemplos de uso de recursos públicos, as denúncias generalizadas de ineficiência e a inegável corrupção estatal no Brasil também deram enorme impulso à narrativa da desmoralização do Estado e do grupo político que esteve a sua frente nos últimos anos.

Certamente esses maus exemplos não podem ser negligenciados, mas, por outro lado, disso não decorre necessariamente que a melhor alternativa de enfrentamento desses problemas estruturais seja a adoção de uma agenda conservadora (não referendada pelas urnas) e o impedimento do governo eleito em 2014 por, supostamente, ser mais corrupto que os demais ou ter se tornado impopular. No entanto, e como se sabe, essa foi a solução repetida cotidianamente, de forma explícita ou subliminar, nos meios de comunicação de massas que lapidam as narrativas vencedoras.

Como negar, por exemplo, a influência e o forte apelo midiático do mito de que o Brasil possui uma das “maiores cargas tributárias do mundo” (mito que não resiste a uma honesta comparação internacional)? Como negar a força simbólica do “impostômetro”? Como negligenciar a influência do mito de que são os empresários ou mesmo as classes de renda média elevada que “pagam o pato” (hipótese que também não sobrevive à constatação da enorme regressividade da nossa carga tributária)?

Enfim, como ignorar a influência da repetição cotidiana dessas mensagens na construção do quase consenso de que “a ineficiência estatal e corrupção são nossos principais problemas” (apesar, por exemplo, da Operação Zelotes apontar que a sonegação pode ser problema ainda maior que a corrupção)?

Em síntese, não é possível compreender o triunfo dessas narrativas conservadoras sem situá-las no contexto da hegemonia liberal, da predominância de valores utilitaristas, da concentração e ausência de pluralidade nos meios de comunicação de massa e, por último, mas não menos importante, dos enormes erros do governo e seu partido nos últimos anos.

No que se refere aos erros dos governos petistas não nos referimos apenas à manutenção da forma tradicional e antiética de se fazer política, mas na incapacidade de levar a cabo uma agenda política e econômica alternativa e no fracasso da sua estratégia de comunicação.

Os erros capitais da estratégia petista

Com efeito, constrangido pela fragilidade do seu arranjo político e crescentemente pressionado pelo clima conservador que ganhou corpo após as manifestações de 2013, o governo petista fracassou na iniciativa de ampliar o debate sobre a dimensão e a natureza da crise política e institucional, permitindo que os mitos destacados acima se fortalecessem.

Não colocou foco e energias suficientes na reforma política e praticamente abandonou o debate sobre a regulação dos meios de comunicação; em suma, não ofereceu um caminho alternativo que representasse um contraponto eficaz ao discurso simplista vendido pela grande mídia e comprado pelas massas. Ao contrário, acuado pela crise econômica e por seus adversários depois das eleições de 2014, optou por adotar a agenda econômica oposicionista na esperança de que, com isso, restauraria as condições de governabilidade.

Nessa sucessão de equívocos, o governo fracassou e não atingiu nenhum dos seus objetivos. De fato, afastou-se das suas bases tradicionais, abriu mão de reformas e políticas essenciais e tampouco tranquilizou o mercado. Nesse sentido, a guinada ortodoxa da política econômica, como muitos anteciparam, só trouxe o acirramento da recessão, o que realimentou a fragilidade do governo no Congresso e perante a sociedade de forma generalizada.

Montado esse cenário, estavam postas as condições para o impeachment, agora com a ajuda inestimável da massa capitaneada pelas forças e mitos conservadores. O empurrão final certamente não faltaria e foi de fato oferecido pela grande mídia em associação (tácita ou explícita) com parte do judiciário, que transformou a Operação Lava Jato  ̶ mais uma oportunidade histórica de desnudamento das relações promíscuas entre setor público e privado  ̶ numa arma de propaganda oposicionista dado o caráter seletivo de suas investigações e seus métodos pouco republicanos.

Forças conservadoras e as vítimas da radicalização

Finalmente, no que diz respeito às forças conservadoras protagonistas dos eventos recentes, não há como não recorrer à história para ressaltar um ponto importante. Indo ao cerne da questão, o fato é que o exame do nosso passado ensina que não é de hoje, nem de 20 anos, que existe na elite brasileira uma parcela fortemente movida por preconceitos seculares e avessa a quaisquer medidas que representem o mínimo risco de mudança do nosso status quo. Pois bem, essa parcela conservadora da elite e da sociedade está na grande mídia, está em boa parte do judiciário, nos diversos partidos, está em cada esquina.

Lembremos que no passado seus congêneres perseguiram JK, conspiraram contra o reformismo social de Getúlio Vargas, apoiaram e aplaudiram o golpe de 1964 e a terrível ditadura que se seguiu. São eles que,movidos pelo patrimonialismo e preconceitos de classe, ainda têm uma visão míope da justiça, uma visão pautada sempre na presunção da culpa de seus desafetos e suposição da inocência de seus semelhantes.

Enfim, são eles que, ao silenciar sobre a profunda crise institucional e de representatividade que atravessamos, partidarizam e “fulanizam” o problema estrutural da corrupção apenas para atingir seus adversários, propagandeando o mito do “partido mais corrupto da história”. São eles que batem panelas seletivas e que nutrem, cotidianamente, o crescente sentimento de ódio que se viu formar nos últimos anos.

Suas vítimas, porém, não são apenas o governo petista e a credibilidade internacional do país. Também não é somente a soberania das urnas, princípio democrático maquiavelicamente relativizado por subterfúgios como “pedaladas” fiscais (prática que não constitui crime de responsabilidade) e pela impopularidade do governo eleito em 2014.

Com efeito, a vítima será também a possibilidade de avanço social através da conciliação dos interesses da elite e dos mais pobres, conciliação apoiada até recentemente num precário presidencialismo de coalizão e que parece esgotada na radicalização política e ascensão da agenda conservadora. Mais do que isso, a vítima será também a própria cidadania no seu pressuposto de emancipação política dos indivíduos, já que o triunfo das narrativas conservadoras solapa a oportunidade de compreensão da natureza e da gravidade da nossa crise de representação democrática.

Como é típico numa sociedade massificada, num ambiente de partidos políticos desacreditados e sem autenticidade – e na ausência de um debate profundo sobre a crise estrutural das instituições políticas -, o espaço está aberto ao obscurantismo, ao personalismo de líderes carismáticos, às frustrações sucessivas com os rumos da democracia e ao retrocesso social.

Não nos enganemos: os atores que lideraram o golpe não querem acabar com a corrupção (pois são historicamente seus principais beneficiários); também não querem apenas excluir o governo eleito em 2014 e seus possíveis sucessores do jogo do poder. Mais do que isso, e como já fica claro há algum tempo, querem revogar os parcos direitos sociais que foram conquistados na Constituição de 1988 ‒ através, por exemplo, de uma agressiva flexibilização do mercado de trabalho  ‒ e restaurar de vez a plutocracia rentista que comandou historicamente os destinos do país, salvo honrosos períodos de exceção.

Agindo ao mesmo tempo como formadores de opinião e como elite conservadora apegada a preconceitos seculares, querem eliminar direitos das maiorias porque na sua visão neoliberal esses direitos “não cabem no orçamento”. Assim estão operando. Contra esse retrocesso é preciso, pois, assumir os enormes erros do passado, realinhar as forças democráticas progressistas, construir narrativas alternativas eficazes e realistas, bem como manter uma luta renovada pela reestruturação das nossas instituições políticas e pela manutenção dos direitos sociais. A história nunca acabará. A renovação democrática depende da clareza desses diagnósticos e da habilidade política para recolocá-los no centro do debate o mais rápido possível.

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