Publicado no Instituto Humanitas Unisinos e originalmente no jornal La Repubblica, em 20-3-2015
Por Fabio Gambaro, com tradução de Moisés Sbardelotto
Para Tzvetan Todorov, em um sistema democrático, todo poder deve ter limites. Só assim a democracia pode se defender dos seus inimigos. O estudioso francês de origem búlgara falará sobre isso neste domingo, em Udine, Itália, junto com o diretor do jornal La Repubblica, Ezio Mauro, em um diálogo público intitulado “A liberdade e os seus vínculos”.
Para Todorov, tal reflexão é mais do que nunca atual, especialmente depois dos atentados de Paris. “Pessoalmente, naqueles atos de violência, não vejo um ataque contra os fundamentos da democracia, nem um exemplo de choque de civilizações”, diz o estudioso, muito conhecido também na Itália pelos seus livros, incluindo I nemici intimi della democrazia e La paura dei barbari.
“Os próprios agressores explicaram o seu gesto como vingança pelas caricaturas do Profeta e pelas intervenções militares ocidentais. O que está em aberta contradição com os princípios democráticos não são as convicções na origem desses atos, mas sim a execução fria de 17 pessoas. Portanto, são semelhantes aos atos terroristas do passado, da Fração do Exército Vermelho (RAF), na Alemanha, ou das Brigadas Vermelhas”.
Eis a entrevista.
Segundo muitos observadores, os atentados de Paris quiseram atingir alguns princípios universais – liberdade e igualdade de direitos –, considerados como fundamentos da democracia.
A democracia liberal não é um regime baseado em valores universais. Essa definição vale para as teocracias, ou para os sistemas totalitários que pretendem realizar um projeto legitimado pela ciência (a biologia das raças, o materialismo histórico). As democracias não invocam valores absolutos. A sua ação nasce do compromisso entre princípios complementares, por exemplo, entre igualdade e liberdade, que podem coexistir, mas também conflitar, ou entre poder do povo e liberdade dos indivíduos.
Isso também vale para a liberdade de expressão? Depois do atentado contra o Charlie Hebdo, reabriu-se o debate sobre os seus limites.
A liberdade de expressão não é um valor inalienável, intangível ou inegociável. O Estado democrático é expressão da vontade popular e, ao mesmo tempo, proteção das liberdades individuais, que ele deve defender junto com uma pluralidade de valores, como a segurança, a justiça, a igual dignidade de todos. Esses valores tendem a se limitar uns aos outros. E a política de um Estado é sempre um compromisso entre valores diferentes. Limitar a liberdade de expressão não significa introduzir uma censura obscurantista, mas assumir as próprias responsabilidades políticas.
Portanto, o senhor é a favor de tais limitações?
A liberdade de imprensa também é um poder. E, na democracia, como dizia Montesquieu, um poder sem limites não é legítimo. Não nos esqueçamos de que, no século XIX, o jornal do antissemita Edouard Drumont se chamava La libre parole: para ele, a liberdade era difamar os judeus. Agora, na Europa, os partidos xenófobos invocam a liberdade de imprensa para poder dizer impunemente todo o mal dos muçulmanos. Quando defende a liberdade de imprensa, sempre se deveria se interrogar sobre a relação de poder entre quem a exerce e quem a sofre. Drumont atacava uma minoria – os judeus – já discriminada, beneficiando-se do apoio da maioria. Edward Snowden, que revelou os desvios ilegais dos serviços norte-americanos, é um indivíduo que acusa o governo do seu país. Devemos condenar o primeiro e defender o segundo.
Se cada comunidade impõe seus próprios limites, o espaço de liberdade compartilhada se reduz enormemente. A noção de laicidade pode ajudar?
As nossas sociedades nunca foram completamente homogêneas. Sempre foram constituídas por populações portadoras de múltiplas diferenças: regionais, profissionais, de classe, de sexo ou de idade. Para geri-las, recorreu-se a dois princípios complementares: o da legalidade comum (uma mesma lei para todos) e o da tolerância (para todas as práticas não abrangidas pela lei). Diante de cidadãos de diferentes religiões ou sem religião, a laicidade é uma necessidade, contanto que o Estado seja neutro em relação às diversas fés, sem pretender o desaparecimento do espaço público de todo sinal de pertença religiosa, como às vezes acontece na França. As pertenças culturais fazem parte das pessoas.
Os terroristas parisienses nasceram e cresceram na França. Como é possível que uma sociedade democrática tenha dado à luz seus próprios inimigos mais radicais?
Mais do que da democracia, os assassinos de janeiro são filhos da sociedade mundializada. Buscam informações na internet, um espaço virtual que ninguém controla e em que já é impossível distinguir entre fatos e fabulações. Em busca de uma causa sagrada que dê sentido às suas vidas, eles são presa fácil para hábeis pregadores.
Mesmo sem fazer injustas generalizações, como o senhor interpreta o fato de que os terroristas parisienses faziam referência ao Islã?
A dificuldade consiste em articular duas proposições igualmente verdadeiras: os atos terroristas não dependem da religião muçulmana, mas os seus autores se referem ao Islã. Mais do que no Alcorão, que, como todos os livros sagrados, contém afirmações contraditórias, devemos buscar a explicação na história dos países muçulmanos, onde as correntes de interpretação fundamentalistas impediram uma evolução da doutrina.
Como o senhor vê hoje as relações entre o Islã e o mundo ocidental?
É preciso reconhecer que o Islã já é uma religião praticada no mundo ocidental. Consequentemente, é possível pedir que os seus fiéis respeitem as leis comuns. Ao mesmo tempo, é preciso evitar a islamofobia. Além disso, as intervenções militares nos países muçulmanos produziram resultados muito negativos, favoreceram a identificação do Ocidente com o papel dos dominadores, o que, evidentemente, aumentou o ressentimento contra eles. Infelizmente, as escolhas dos nossos governos nem sempre são coerentes.
Comentarios