Se eu contar para um estrangeiro qual é a concentração de renda e riqueza no Brasil, ele simplesmente dirá: unbelievable! Achará que minha narrativa não merece crédito por ser não acreditável ou incrível. Ele achará que tal injustiça social não se pode imaginar, explicar, admitir. Para ele, é inimaginável, inconcebível que uma sociedade ocidental dita civilizada, no século XXI, ainda aceite tal desigualdade. Ela é exagerada, desmedida, fora do comum, excessiva…
Se é desmedida, tem de ser medida. Antes de a presidenta eleita, Dilma Rousseff, promulgar a Lei nº 12.527/2011, que regulamenta o direito constitucional de acesso às informações públicas, as informações sobre as DIRPF não eram acessíveis. Essa norma entrou em vigor em 16 de maio de 2012 e criou mecanismos que possibilitam, a qualquer pessoa, física ou jurídica, sem necessidade de apresentar motivo, o recebimento de informações públicas dos órgãos e entidades.
A lei vale para os três Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. Entidades privadas sem fins lucrativos também são obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à destinação dos recursos públicos por elas recebidos. Após um governo democrático, tornou-se possível medir com maior precisão, principalmente, o que era antes muito difícil: a concentração de riqueza no País.
A Secretaria da Receita Federal (SRF) deu acesso ao maior detalhamento dos grandes números das DIRPF de 2008 a 2014, cujos anos-calendários (AC) são os anteriores. Quanto à DIRPF 2015-AC 2014, ainda na gestão de Nelson Barbosa como ministro da Fazenda, juntamente com a primeira edição do Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira de 2016, foi publicada uma portaria que registra a obrigatoriedade da divulgação dessa análise, com bases anuais, para que a população brasileira possa conhecer melhor a distribuição de renda e do patrimônio no nosso país.
O relatório que passa a ser produzido e divulgado anualmente a partir do ano corrente é um avanço fundamental para nossa democracia. Ele dá mais transparência à estrutura da distribuição da renda e da riqueza no Brasil. Espero que não ocorra um retrocesso democrático que imponha que essa portaria não seja doravante cumprida.
Para simplificar a apresentação do Relatório 2016, foi feita uma agregação do rendimento total por decil, deixando desagregados apenas os últimos estratos: 5%, 1% e 0,1% mais ricos. A partir dessa desagregação é possível verificar a concentração da renda e riqueza de forma mais detalhada: os 5% mais ricos detêm 28% da renda total e da riqueza, sendo que o 1% dos declarantes mais ricos acumulam 14% da renda e 15% da riqueza. Os 0,1% mais ricos detêm 6% da riqueza declarada e da renda total.
As informações foram desagregadas em centis – isto porque por lei não se pode individualizar contribuintes –, incluindo a informação por milésimo no 99º centil, das Declarações do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física 2015, ano-calendário 2014. A SRF divulgou três planilhas (em Excel e PDF), sendo que a Tabela I compreende a distribuição por centis tendo como classificação a renta tributável bruta (RTB).
O desafio para a análise científica contemporânea é transformar complexidade em simplicidade. No caso, quando deparamos com uma imensa planilha Excel de 110 linhas e 18 colunas, temos que usar recursos como agrupamentos de tópicos, segmentação de dados, tabelas dinâmicas, auto-soma e média, depurar fórmulas,unir planilhas e tabelas, mesclar e centralizar célula etc. Foi o que fizemos para criar indicadores da estratificação social da renda (tributável bruta, sujeita à tributação exclusiva, e isenta), das deduções, do imposto devido, dos bens e direitos e, por fim, das dívidas e ônus.
Os simples agrupamentos já revelam desigualdades sociais assombrosas. Estavam obrigados à entrega da DIRPF/2015 aqueles que receberam rendimentos tributáveis na declaração, cuja soma foi superior a R$ 26.816,55. Então, as pessoas que receberam em média menos de R$ 2.234,71 mensais (ou 3,09 salários mínimos de 2014: R$ 724,00) são consideradas “párias”, isto é, não-contribuintes ou “intocáveis” pelo fisco.
Em 2013, a população em idade ativa (PIA), isto é, com 15 anos ou mais de idade, chegou a 156,6 milhões. Nesse universo, cerca de 102,5 milhões (65,5%) compunham a população economicamente ativa (PEA) e 54,1 milhões de pessoas (34,5%) formavam a população não economicamente ativa (PNEA). Em outras palavras, os 27.367.071 de contribuintes representavam pouco mais de ¼ da PEA. Eles comporiam as “castas” brasileiras. Talvez, por isso mesmo, os demais não são tratados como cidadãos…
Fizemos a classificação social dos declarantes por agrupamentos da seguinte forma: metade (50%) seria a “classe média baixa” (CMB); 40% seria a “classe média-média” (CMM), 9% a “classe média-alta” (CMA), 1% dos “ricos” (R), inclusive o 0,1% composto de “ricaços” (RR).
No caso dos primeiros 50% (CMB), o limite superior da RTB do 50o. centil foi de declarante que recebeu 33,75 mil reais no ano de 2014. Porém, a renda média anual per capita foi pouco menos de 20 mil reais ou R$ 1.640,30 mensais, o que equivalia a 2,3 salários mínimos. Metade dos declarantes (13,7 milhões) ficaram nesse segmento.
Outros 11 milhões de declarantes estavam na CMM com o top dela recebendo quase R$ 105 mil no ano, porém a renda média anual per capita foi 56 mil reais ou R$ 4.660 mensais. Esse equivalente a 6,4 salários mínimos era o que recebia, por exemplo, um recém-formado em alguma universidade de excelência no Estado de São Paulo em 2014.
A CMA, “que se acha” – como dizia minha avó, “come angu, mas arrota peru” –, era composta por menos de 2,5 milhões de pessoas, cuja mais abonada recebeu R$ 316 mil reais no ano de 2014, mas a média anual per capita era 164 mil reais ou R$ 13.700 mensais, o equivalente a quase dezenove salários mínimos. Acima dela estavam os ricos.
O 1% top da distribuição de RTB (desconsiderando outros rendimentos) recebiam em renda média anual per capita mais de ½ milhão de reais (R$ 531.108) ou R$ 44.259 mensais, o que equivalia a 61 salários mínimos. Mas o mais impressionante é que 27.367 pessoas (0,1% dos declarantes) recebiam a renda média mensal per capita de R$ 135 mil!
Essa renda tributável bruta representava para esses 0,1% menos de 42% de seu rendimento total. Pois tinham 17% dos rendimentos sujeitos à tributação exclusiva, entre os quais ganhos de capital, rendimentos de aplicações financeiras, juros sobre capital próprio e participação no lucro ou resultados, e 41% de rendimento isento! Entre estes, lucros e dividendos, ou seja, o ganho de capital acionário ou recuperação de prejuízos em renda variável. Ser capitalista aqui em Terrae Brasilis não é o melhor negócio sem risco – e tributação?!
Proporcionalmente, a CMB tinha mais despesas dedutíveis (quase 40%) com dependentes. A CMM se destacava mais pelas despesas com instrução. E a CMA privilegiava mais investirem em previdência complementar, pois seu RTB médio mensal (4.659,91) já ultrapassava o teto do INSS em 2014: R$ 4.390,24.
É chocante o confronto entre as três tabelas divulgadas pela SRF. Além da Tabela I (RTB) com os dados citados, ela divulgou a Tabela II, que compreende a distribuição por centis tendo como classificação o somatório da RTB mais os rendimentos dos sócios ou titulares de micro e pequenas empresas mais os rendimentos recebidos a título de lucros e dividendos (RB1), e a Tabela III, que compreende a distribuição por centis tendo como classificação o somatório da RTB mais os rendimentos dos sócios ou titulares de micro e pequenas empresas mais os rendimentos recebidos a título de lucros e dividendos mais os rendimentos sujeitos à tributação exclusiva (RB2).
As RTB médias anuais de cada centil não se diferencia muito quando se acrescenta o RB1. Porém, há grande diferença quando se compara com a coluna onde se considera o RB2. Calculando a diferença entre RB2 e RB1, obtêm-se só os rendimentos sujeitos à tributação exclusiva por ano. Aí, então, as diferenças de 10 em 10 centis vão se tornando gritantes. E ficam mais pronunciadas quando, na última coluna, estimam-se os valores mensais desses dez centis selecionados. O 100o. obteve de rendimentos sujeitos à tributação exclusiva, onde se destacam os ganhos de capital, os rendimentos de aplicações financeiras, juros sobre capital próprio e participação nos lucros ou resultados (PLR), R$ 461 mil mensais!
O mais inacreditável é constituído pelos dados divulgados pela SRF para os decis do 99o. percentil. Será verdade que, considerando todos os rendimentos (RB2) do 1% top, o limite superior desse centil (com 273.671 declarantes) atinge R$ 1.071.215.915,10?! Quem é este bilionário em renda? Será que é o mesmo que ganhou no ano de 2014 renda tributável bruta de R$ 154 milhões? RB2 sete vezes maior do que a RTB?!
A RB2 média anual desses ricos (1% top) atingiu pouco mais de seis milhões de reais: R$ 6.077.746,42. Porém, os valores de cada decil do 99o. percentil são inacreditavelmente elevados: cerca de 10 vezes maior, ou seja, acima de R$ 61 milhões até ultrapassar R$ 69 milhões no 0,1% ricaço. Se isso for verdade, cada um desses decis, composto por 27.367 pessoas, ganhou a cada mês de 2014 o valor médio de R$ 5,261 milhões. Suspeito que os dados divulgados pela SRF referentes a RB2 dos decis do 99o. percentil estão com a vírgula deslocada em um décimo, ou seja, tem que se mover em uma casa à esquerda.
Como proxy para verificar se a origem dessa riqueza está em rendimentos de aplicações financeiras, pelo Relatório ANBIMA de Private Banking em dezembro de 2014 haviam 57.705 grupos econômicos como clientes – na época a ANBIMA não distinguia entre grupos e clientes, por exemplo, em dezembro de 2015 eram 52.050 grupos e 109.894 o número de clientes resultado da soma dos CPFs e CNPJs atendidos pelo Private. A posição de AuM (Assetsunder Management) somava R$ 645.064,51 milhões. Considerando a Selic média anual em 2014 (11,6%) aplicada sobre esse saldo, o rendimento seria R$74.827.483.160. Dividindo-o por 57.705 grupos, daria o rendimento financeiro médio per capita anual de R$ 1.296.724,43. Esse valor equivaleria a “apenas” R$ 108.060,37 mensais, longe daqueles R$ 5,261 milhões.
Então, estes rendimentos sujeitos à tributação exclusiva viriam não tanto de rendimentos de aplicações financeiras, mas sim de ganhos de capital, juros sobre capital próprio, participação no lucro ou resultados. A exploração de capital produtivo parece ter oferecido melhores resultados, para os ricaços, do que os juros compostos sobre o capital financeiro. O principal fator de concentração de renda estaria aí.
Corrigidos os valores divulgados pela SRF para cada decil do 99o. percentil em uma casa decimal, os números se tornam mais realistas com a média mensal de R$ 485.217,96 de rendimentos sujeitos à tributação exclusiva. Estimo que os rendimentos financeiros teriam sido 22% deles.
Se os dados divulgados pela SRF estiverem corretos, o retrato social revelado é que a grande maioria dos brasileiros mal ultrapassou o estágio de apenas quatro gerações de descendentes de escravos – seus bisavôs. Conquistou poucos direitos da cidadania, sejam civis-sociais-políticos,sejam econômicos. A desigualdade é tão pronunciada que os trabalhadores explorados parecem estar ainda em senzalas com as quais as casas-grandes pouco se importam…
Tabela I e II – Informações da DIRPF 2015 (Ano Calendário 2014) de 10 em 10 centis
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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