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Foto do escritorBrasil Debate

A história deles não começa em 1988

Um continente com muitos povos, rico culturalmente e de múltiplas formas sociais. Povos que desenvolveram tecnologias socioexistenciais em contato direto com os outros seres, vegetais e animais, e que não precisaram chamar o seu entorno de “meio ambiente” ou “natureza”, por serem, e saberem que são, parte de um complexo existencial fantástico. Assim, seguiram por milênios, construindo sua história, não sem conflitos, mas abundantes de sentido existencial.

Mas, chegou o tempo em que o céu viria a cair. Aquele tempo em que seres de pele clara atravessariam o oceano e invadiriam Abya Yala (expressão do povo Kuna, que tem sido utilizada por diferentes povos para designar o que também se chama de Américas). Os “brancos”, também conhecidos como europeus (portugueses, espanhóis, franceses, holandeses), no seu século XVI, estabeleceram guerra contra eles, trouxeram-lhes doenças (físicas e mentais), aplicaram suas doutrinas, se apossaram forçosamente da terra, lhes classificaram e os chamaram de “índios”, escravizaram, aldearam e trouxeram morte, muita morte.

Os invasores se constituíram como Estados Nacionais. Criou-se, dentre esses Estados o Brasil, sobre porções de terra que alguns dos povos originários chamavam de Pindorama. E o Brasil seguiu fazendo guerra contra esses povos. “Guerra justa”, disseram os donos do poder de Brasil.

Os povos de Abya Yala, porém, insistiram em resistir. Se movimentaram, migraram, fizeram alianças entre si. Veio o tempo em que algumas alianças com frações do povo invasor foram possíveis, em favor do objetivo, perseguido incansavelmente, de continuarem a existir e a viver em suas terras.

Assim, 488 anos depois do início da invasão de Pindorama, após um intenso período de ataques violentos (com destaque para o período entre o anos de 1964 e 1985, nos quais vigorou a cruel ditadura militar brasileira) esses povos chamados de “indígenas” conseguiram, nas regras do jogo do invasor, um pequeno alento, na forma de reconhecimento de seu direito originário sobre as terras que habitam milenarmente. Fruto da insistência desses povos em continuarem a lutar. Em 05 de outubro do ano brasileiro de 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88), que possui em seu texto dois artigos, 231 e 232, em que se estabelecem os seus direitos originários, ainda que continuem sendo chamados de “índios”. Finalmente deixaram de ser considerados tutelados e passaram a ser partes legítimas em defesa do seu próprio interesse, conforme estabelecido pelo Artigo 232.

Nem por isso os ataques cessaram. Continuaram as invasões de suas terras, demarcadas pela União Federal. Muitos dos conflitos anteriores a 1988 continuam sem a devida solução. Disputas que colocam os povos originários de frente aos invasores, fazendeiros, grileiros e aproveitadores. A CF/88, por outro lado, deu fôlego aos legítimos processos de retomada de suas terras tradicionais, de onde foram violentamente expulsos, muitas vezes, pelo próprio Estado brasileiro.

Esses conflitos relacionados às terras dos povos originários têm sido direcionados à esfera judicial brasileira. São muitos processos, em que, de um lado, os povos originários reivindicam o direito de ocupar e permanecer em suas terras tradicionais e, de outro, fazendeiros e grileiros e até mesmo entidades do Estado Brasileiro (municípios e órgãos das administrações estaduais) requerem a retirada desses povos de suas terras.

No próximo dia 28 de outubro, ao que tudo indica, o STF proferirá uma decisão que pode determinar os novos rumos dessa sangrenta história. Será julgado um Recurso Extraordinário (RE1017365), de repercussão geral (ou seja, que servirá como referência para outros casos), impetrado pela Comunidade Indígena Xokleng, da Terra Indígena Laklanõ, em Santa Catarina. Ao fim e ao cabo, contra os povos indígenas pesa a esdrúxula tese jurídica do “marco temporal”. Isto é, a defesa de que os direitos originários constituídos na CF/88 só teriam validade caso o povo estivesse em posse da terra em, ou a tenha reivindicado formalmente até, 05 de outubro de 1988, quando a própria CF/88 fora promulgada.

Tese essa que foi endossada por uma fração da burocracia estatal brasileira, por meio de parecer da Advocacia Geral da União (Parecer 0001/2017/GAB/CGU/AGU), de 2017, durante a administração Temer, que se valeu de argumentos isolados de julgamento do STF, de 2009, que envolvia a reserva Raposa Serra do Sol. Nesse parecer a AGU evoca as “salvaguardas institucionais” do caso mencionado para orientar a revisão das normas voltadas à demarcação de terras indígenas, com a aplicação da tese do marco temporal, dentre outros elementos normativos que seriam desfavoráveis aos interesses dos povos originários.

No início de 2020, o Ministro Edson Fachin suspendeu os efeitos do Parecer da AGU até que se julgasse em plenário o Recurso Extraordinário, considerando que a reprodução das “salvaguardas institucionais” se deu em desconsideração ao contexto da decisão de 2009. Determinou também que a Funai se abstivesse de rever quaisquer procedimentos quando à demarcação de terras indígenas.

Do ponto de vista formal, a tese do marco temporal parece ter um sério problema lógico. Como é sabido, até 1988, os povos originários eram considerados pelo Estado brasileiro como “tutelados”. Um estatuto equivalente ao de uma criança. Como alguém incapaz de requerer seus próprios direitos. Classificação que faz parte do pacote de violências do invasor. Mas, sendo assim, como poderiam reivindicar formalmente seu direito à terra antes de 1988? Esse questionamento ganha contornos ainda mais sérios quando consideramos que o agente promotor da violência e da expulsão desses povos de suas terras tradicionais foi, em muitas ocasiões, o próprio Estado. Como no período da ditadura militar, para o qual não faltam evidências.

Do ponto de vista histórico, negar o direito dos povos originários de reivindicar suas terras tradicionais, principalmente as retomadas após 1988, seria o mesmo que chancelar crimes de guerra.

A CF/88 é o primeiro passo de uma longa caminhada de reparação dos povos de Abya Yala, de Pindorama. Eles dizem: “Nossa história não começa em 1988”. Reconhecer esse fato é um próximo passo se quisermos ter um mínimo de dignidade para a constituição de um verdadeiro país, que entenda suas multiplicidades e defina um verdadeiro marco histórico e humanitário de soberania.

Crédito da foto da página inicial: Marcello Camargo/Agência Brasil

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