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A hegemonia norte-americana, satélites e a bomba atômica

Em 21 de agosto, os Estados Unidos testemunharam eclipse total do sol, com cobertura nacional televisiva, cidade a cidade, ao longo do curso diário aparente da luminária ao redor da Terra. Para os astrólogos, a conjunção entre lua e sol em leão indicou mudanças virtuosas na liderança dos EUA, território no qual o eclipse pode ser observado. Aspectos positivos com Júpiter e Urano indicariam ainda transformações impulsionadas por tecnologia e amparadas por “elevados valores” internacionais de justiça e liberdade. Há fundamento para tal euforia?

Ao longo da década de 50 do século passado, os gigantescos oligopólios industriais norte-americanos se viram diante de impasse com o fim das encomendas militares da década anterior. Criou-se então, nos EUA, institucionalidade para aquele que viria a ser um dos principais centros de formulação para exercício hegemônico nos muitos anos seguintes, o Research And Development (RAND).

Criado como divisão da Douglas Aircraft Co., o RAND reuniu pesquisadores com desafio de formular e aplicar metodologias para detalhamento de conceitos emanados de discussões de estratégia. No pós-guerra, tornou-se ente privado, sem fins lucrativos, porém com forte relação com a indústria e a Aeronáutica. Cumpria-se formular e detalhar estratégia para o exercício hegemônico dos EUA com a bomba atômica.

O então recente surgimento das ogivas termonucleares fortaleceu, ainda nos anos 50, a visão de que o domínio do aeroespaço seria a chave para afirmação da supremacia político-militar norte-americana nos anos vindouros. Contudo, havia duas estratégias em disputa no establishment dos EUA. Na primeira via, instrumentalizada com apoio da NASA, defendia-se que os EUA deveriam erguer infraestrutura militar nuclear voltada para “retaliação em massa” contra qualquer ameaça nuclear estrangeira. Isso implicou no desenvolvimento de foguetes teleguiados com combustível sólido (linhas Polaris, Atlas, Thoretc) e aviões com elevada autonomia (B52).

De outro lado, no RAND se defendeu o desenvolvimento de satélites para identificação e monitoramento de ameaças e emprego de veículos não-tripulados (drones) em missões táticas. A história registra a posição defendida pelo RAND como “perdedora” diante dos desdobramentos da guerra-fria.

A aparente “disputa” entre RAND e NASA foi resolvida com a síntese, atingida na segunda década do século XXI, entre ambas as “vias”. O objetivo aqui é mostrar que os EUA acumulam, na atualidade, ímpeto para novo ciclo de investimentos em sistema de armas que combina: (i) poder policial-coercitivo, para ameaças dentro das fronteiras do império; com (ii) poder militar, contra Estados-Nação localizados na Eurásia, principalmente. Do impulso militarizante espera-se a produção de transbordamentos tecnológicos compatíveis com novo salto industrial liderado pelo país nas próximas décadas.

Conforme se pode concluir, os espaços para a coordenação de esforços internacionais que venham a frustrar o estabelecimento de uma “nova ordem mundial” pelos EUA encontram-se reduzidos na primeira metade deste século.

Estratégias apoiadas pela NASA e pelo RAND no pós-guerra

Em 1946, enquanto ainda era divisão da Douglas Aircraft Co., o RAND publicou artigo denominado A Preliminary Design ofan Experimental World-Circling Spaceship em que os pesquisadores propunham sistema de identificação e monitoramento remoto de alvos “globais” a partir de câmeras em satélites não tripulados. A partir daí, apoiou-se conjunto amplo de programas de pesquisa orientados para telecomunicações, materiais e propulsão.

As equipes do RAND perceberam o constrangimento político de armas atômicas e procuraram encontrar saídas na guerra convencional. A ideologia compartilhada no RAND era manter o aeroespaço livre da corrida armamentista. Esta ideologia frutificou através dos acordos que proibiram desenvolvimento de sistemas de mísseis antimísseis anos mais tarde.

A primeira proposta deste tipo na era atômica foi a de guerra preventiva; Isto está praticamente defunto, mas pode no futuro vir a ser revivida. A guerra preventiva é baseada na suposição de que uma guerra total é inevitável e que, nesta guerra, quem atirar primeiro levará vantagem decisiva. A estratégia de retaliação em massa é como a guerra preventiva, só que espera primeiro uma provocação. [Brody (1959)[1]]

Desde o imediato pós-guerra, a estratégia de retaliação em massa orientou a política externa norte-americana. Os benefícios decorrentes do keynesianismo bélico são conhecidos de todos, sendo particularmente importantes na Europa, que acabou por contribuir com parte significativa dos custos de implementação dos sistemas de mísseis (Figura 1).


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Os investimentos norte-americanos em MBIC (mísseis balísticos intercontinentais) foram interrompidos na segunda metade da década de oitenta, alguns anos antes da “queda do muro” em Berlim em 1989, mas as principais potências asiáticas deram continuidade a programas de desenvolvimento de mísseis intercontinentais até a presente data.

De maneira a justificar os gastos militares com a implantação de MBIC, os EUA criaram a agência espacial NASA. Os propósitos pacifistas e científicos da NASA permitiram escoamento de recursos públicos para desenvolvimento tecnológico em propulsão, navegação, materiais, entre outros de interesse civil e militar.

A “corrida à lua” pode ser vista, neste contexto, como ilusionismo diante da racionalidade do complexo-industrial-militar incumbido, com recursos públicos, de implementar instrumentos de retaliação em massa.

Na Figura 2 pode-se perceber como a NASA teve participação decisiva nos montantes gastos para P&D em mísseis. Após os anos 70, quando a estratégia de retaliação em massa perdeu força, a NASA manteve agendas de P&D relevantes, principalmente com impulso aos programas de desenvolvimento de tecnologias de telecomunicações em rede e satélites geoestacionários experimentados nos anos noventa.


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O sistema de posicionamento global norte-americano entrou em operação em 1993 e hoje conta com 24 satélites geoestacionários em órbita a 22,2 mil metros de altitude e que fornecem identificação de fontes de sinal com precisão de cerca de um metro na superfície do planeta.

Em artigo-denúncia, o New York Times revelou, em 1985, a existência de uma agência secreta dedicada ao comissionamento e operação de satélites e sistemas para identificação e monitoramento de alvos – o National Reconnaissance Office (NRO). [2]

Em 2000, o Congresso norte-americano publicou relatório de avaliação sobre a NRO, denominado “A NRO na encruzilhada”. Conforme fica evidente, o NRO passou a compartilhar a disponibilidade dos satélites entre finalidade militar e comercial. Não obstante, passou-se também a integrar as imagens obtidas com metadados e sistemas de identificação e monitoramento de alvos.[3]

Desde os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 a inteligência norte-americana tem permitido incluir, entre as ameaças à segurança nacional, pessoas e grupos localizados dentro do próprio território norte-americano.

Aos territórios sem soberania, o monitoramento dos governos tem permitido a neutralização de ameaças políticas e econômicas associadas a projetos nacionais. A estratégia fundamenta-se na espionagem sobre lideranças políticas prévias a “golpes parlamentares”, como no caso da Coreia do Sul e do Brasil.

Na Ásia, onde as nações dispõem de arsenal nuclear significativo e crescente, a estratégia combina espionagem e ameaça de uso de arsenal nuclear. Lembra-se que, desde os anos noventa, os EUA romperam unilateralmente o tratado que proíbe desenvolvimento de sistemas de mísseis antimísseis. Desde então vêm instalando “escudos” na Europa, no Japão e no Oriente Médio.

Com a eleição de D. Trump, o retorno do complexo industrial-militar ao poder anuncia recrudescimento de escalada militar nos moldes da guerra fria. O objetivo esperado é a mobilização de recursos para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias com aplicação dual, ensejando-se novo impulso industrializante. Trata-se, em última instância, do imperativo de liderar a corrida armamentista abrindo-se fronteiras de enfrentamento ainda pouco exploradas, tais como cibersegurança e biossegurança.

Conclusivamente, os EUA parecem dobrar apostas no caminho de afirmação hegemônica contra um sistema-mundo que vem se desenhando como multipolar nos últimos cerca de vinte anos. Uma vez que, na atualidade, os EUA combinam infraestrutura policial-militar integrada e superior ao conjunto de alianças internacionais potencialmente hostil, não é difícil imaginar que terão sucesso. Montantes crescentes de recursos orçamentários direcionados para P&D militar devem reverter em liderança tecnológica progressivamente inalcançável.

O risco da arrogância leonina dos EUA é o fracasso dos arranjos que permitem que a guerra fria não saia de estreita região de estabilidade e o mundo retorne, mais uma vez, para a esteira de uma guerra mundial.

Notas

[1] Brodie, B. Strategy in the Missile Age, RAND, January, 19th, 1959.

[2] For nearly a quarter of a century, the N.R.O. has been responsible for managing the nation’s growing fleet of spy satellites – at least one of which will be firmly secured to a pallet in Discovery’s cavernous cargo hold. For the same period, America’s reconnaissance-satellite program has been hidden under a heavy layer of security classifications and code names, such as Byeman and Top Secret Ruff. Since its establishment on Aug. 25, 1960, the N.R.O. has been an entirely ”black” organization: The Federal Government has never admitted that it exists, and its name is officially secret.[Bamford, NYT, 12.01.1985]

[3] The Commission concludes that the National Reconnaissance Office demands the personal attention of the President of the United States, the Secretary of Defense and the Director of Central Intelligence. It must remain a strong, separate activity, with a focus on innovation, within the Intelligence Community and the Department of Defense. Failure to understand and support the indispensable nature of the NRO as the source of innovative new space-based intelligence collection systems will result in significant intelligence failures. These failures will have a direct influence on strategic choices facing the nation and will strongly affect the ability of U.S. military commanders to win decisively on the battlefield. [US Congress, novembro de 2001]

Crédito da foto da página inicial: publicado em La Noticia HN

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