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A geopolítica do golpe

Publicado em Carta Maior em 12-4-2015


Em setembro de 2013 a presidenta Dilma cancelou uma viagem a Washington depois das denúncias de que a NSA , a agência de segurança do Departamento de Estado norte-americano, espionava o governo brasileiro.

Um foco central da espionagem era a Petrobrás – ademais do BNDES.

Seis meses depois, em março de 2014, era deflagrada a operação Lava Jato.

O foco de interesse da operação: a Petrobrás.

Agora, ventilam-se suspeitas de irregularidades também contra o BNDES.

Não é necessário ser adepto de teorias conspiratórias para enxergar pertinência na pergunta: existe relação entre os dois momentos?

Ou mais diretamente: a espionagem norte-americana pode ter vazado informações propositalmente para gerar um processo de desestabilização contra a agenda de desenvolvimento brasileira? E, sobretudo, contra a política soberana de exploração das maiores descobertas de petróleo registradas no planeta no século XXI?

Desnecessário dizer que se há consistência em denúncias de corrupção  — tenham elas a origem que for–,  devem ser investigadas. Esse certamente é o caso das Lava Jato.

Todavia, quando há um claro viés político envolvido, e são notoriamente viciados e seletivos os vazamentos das investigações, deve-se arguir as motivações originais do processo. Nada disso inocenta quem é culpado. Mas pode oferecer à sociedade um mirante de maior abrangência, para ampliar seu discernimento sobre o conjunto das forças, os interesses, a manipulação e as omissões envolvidos na questão.

Um efeito colateral de não fazê-lo, por exemplo, é rebaixar a trama a uma disputa entre corporações da PF, a justiça e o Estado brasileiro, perdendo-se as dimensões da disputa geopolítica e estratégica que avulta deste episódio.

Hoje não é possível afirmar que as agências de espionagem dos EUA – ou interesses econômicos associados a elas, são responsáveis (ou os desencadeadores) do quase desmanche a que tem sido submetida a Petrobrás. Insista-se: o processo atinge especialmente a estrutura logística montada em torno da exploração do pré-sal e do beneficiamento em solo brasileiro do óleo extraído dessas reservas.

Até que se prove o contrário, os maiores responsáveis da Lava Jato são os diretores da própria Petrobrás envolvidos em uma parceria ilícita com cartéis de fornecedores e empreiteiras, mancomunados em expedientes de sobrepreços e propinas milionários.

Ainda que essa epiderme pareça resolvida, a tradição intervencionista das agências norte-americanas e sua longa folha de indução, patrocínio e participação direta na história dos golpes de Estado e conspirações contra governos soberanos na América Latina e no mundo autorizam outras cogitações.

Um rápido retrospecto do que é capaz o braço imperial norte-americano indica a pertinência dessa investigação.

Na segunda metade do século XX, os EUA picotaram o planeta com intervenções destinadas a ‘estancar a proliferação de regimes comunistas e/ou alinhados ao campo comunista’, como justificavam seus ideólogos.

Na década de 70, a ‘Détente’ trocou a corrida nuclear direta entre EUA/Rússia pelos conflitos em frentes específicas.

Angola, por exemplo, foi um dos palcos das “Proxy Wars” onde disputa das potências pela hegemonia global patrocinava um dos lados do conflito interno.

No Vietnã, a terceirização ‘suja’ levou ao envolvimento direto de tropas americanas pela virtual incapacidade dos ‘aliados’ do sul cumprirem o script – antes protagonizado pela França com apoio financeiro estadunidense.

A norma, porém, foi a ação do braço ‘oculto’ do intervencionismo norte-americano a insuflar de forma mais ou menos ostensiva a desestabilização de governos, a imposição de interesses econômicos imperiais, a contenção de manifestações populares e/ou promoção de golpes militares.

Alguns exemplos da ‘concretude golpista’ para quem imagina que as coisas se restringem a ações secretas de vigilância eletrônica da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, detalhadas por Edward  Snowden em 2013.  Golpismo em ação na América do Sul:  Brasil* (1964); Chile* (1973); Uruguai* (1973); Argentina* (1976); Bolívia* (1964); Paraguai* (1954); Venezuela (2002). Em tempo: os asteriscos indicam países que fizeram parte da chamada Operação Condor.

Na América Central: Guatemala (1954); República Dominicana (1961); Nicarágua (1981); El Salvador (1981); Cuba (pré-revolução e invasão da baia dos porcos); Porto Rico (1950); Panamá (1958 e 1989). Na Ásia: Vietnã do Sul/Vietnã do Norte (1962 se tomado o ano da entrada dos EUA no conflito); Coreia (1954); Laos (1962); Tibet (1950). Na Ásia Central & Oriente Médio:  Turquia (1980); Líbano (1958 e 1982); Irã – Mossadegh (1953); Libéria (1990); Iraque (1990/1991 e 2003) – Guerra do Golfo;- Afeganistão (2001). Na África: Angola (década de 1980) e Congo (1960).

Sob esse pano de fundo a pergunta inicial pode ser refeita de forma mais ampla.

Quem garante que o cenário atual de quase paralisia econômica e absoluta incerteza em relação ao futuro brasileiro não decorra de uma ação deliberada em que se combinam grampos, invasões de e-mail e uma endogâmica parceria entre interesses locais e imperiais determinados a quebrar a espinha dorsal de um projeto de desenvolvimento  que tem no pré-sal e no ciclo de governos iniciado em 2003 dois dentes decisivos da engrenagem?

Ceticismo? Bem, estamos falando da segunda mais importante economia das Américas, do segundo maior banco de desenvolvimento do mundo (hoje terceiro, depois do banco dos BRICs) e da maior empresa da América Latina (uma das mais importantes empresas de petróleo do mundo); estamos falando do domínio completo da tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas e de um estoque de cerca de 50 bilhões de barris no pré-sal – há quem fale no dobro.

Por menos que isso coisas piores foram patrocinadas pela diplomacia armada dos EUA.

Desde junho de 2013 o Brasil registra uma espiral de mobilizações.

Poucos atentaram para o fato de que o desenvolvimento autônomo da economia brasileira e seu projeto de integração regional tornaram-se alvos de ataques crescentes, à medida em que a pauta desses movimentos se ampliava.

Depois vieram as eleições presidenciais virulentas de 2014.

Projetos explícitos de autonomia do Banco Central, privatizações, abertura de capital e redução do papel do Estado na economia foram apresentados.

Denunciar as consequências dessa agenda conservadora na vida da população foi o fator decisivo para a vitória progressista.

Os EUA tinham lado nessa disputa ou assistiram inertes a ela?

Qualquer um que acesse a wikileaks encontrará documentos comprobatórios de que agências dos EUA financiam jornalistas brasileiros e compram espaços em meios de comunicação.

Isso teria sido gentilmente suspenso durante o pleito de 2014 como prova da lisura do Departamento de estado em relação à soberania democrática do povo brasileiro?

A história recente do capitalismo no país é a história do aprofundamento da associação entre grupos empresariais locais e o capital internacional.

Isso passa ao largo das urnas? E da ‘preparação’ do imaginário social para elas?

Foram de fato ações espontâneas da ‘sociedade civil’ as manifestações crescentes contra o governo, antes de outubro de 2014 e, agora, pelo impeachment?

Onde encaixar, então, a ativa ação coordenadora da família Frias nas manifestações pelo impeachment, convocadas para este 12 de abril?

Quem abrisse o site da UOL logo cedo neste domingo (12/04) encontraria lá as coordenadas e o incentivo para ir à luta.

Isso mesmo, um comitê central de coordenação do esforço pró-impeachment no principal site de notícias do país. Assim:

‘Vai ao protesto deste domingo? Participe pelo WhatsApp do UOL (11) 97500-1925’

Devemos somar esse anúncio convocatório à sucessão de acontecimentos de  ‘geração espontânea da sociedade civil’?

Sem a pretensão de impor aos leitores a tese de que esses sinais sugerem algo mais grave do que o espontaneísmo da sociedade civil em marcha, relacionamos alguns argumentos relevantes para uma reflexão que já passa da hora:

Primeiro argumento: o histórico de conspirações dos EUA

Como demonstrado acima, trata-se aqui de uma evidência histórica documentada. Não estamos falando de nenhum país de tradição pacifista. Estamos falando do intervencionismo radical que considera as Américas e, claro, o ‘quintal’ latino-americano, sua prerrogativa geopolítica inegociável.

Segundo argumento: os interesses corporativos

O Brasil é o país mais importante da América Latina do ponto de vista comercial e financeiro. Depois do NAFTA, tornou-se a última grande fronteira de soberania à dominação pura e simples do poder econômico e comercial dos EUA na região. A reconstrução do Estado brasileiro a partir de 2003 ergueu obstáculos relevantes  à dominação corporativa dos EUA. O BNDES, por exemplo, foi resgatado como banco de desenvolvimento com fôlego para agir no Brasil e fora dele. É um alvo estratégico. Não é casual que Aécio Neves tenha ‘denunciado’ o financiamento do BNDES às obras do porto de Mariel, em Cuba, durante a campanha eleitoral de 2014. Enquanto os EUA estão numa briga interna surda sobre o embargo, o Brasil saltou à frente e na questão naval já agia para ter um lugar estratégico que pode ser uma passagem não só para Europa pelo Atlântico, como para o Pacífico com o canal do Panamá. Além disso, o pré-sal é, sem dúvidas, um alvo preferencial. A legislação dos royalties junto com as regras da partilha inviabiliza o domínio das petroleiras estrangeiras sobre essa riqueza. A Lava Jato atinge uma ferramenta estratégica dessa agenda soberana de desenvolvimento; independentemente dos desvios e irregularidades cometidas, ameaça inviabilizar um projeto autônomo para a expansão e consolidação de um ator geopolítico importante.

Terceiro argumento: as mudanças na geopolítica mundial

Foi de Jean O’Neill para um relatório da Goldman e Sachs que o termo BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – fora criado. Ou seja, como uma referência para o mundo dos investidores. Ninguém poderia supor que esse acróstico para motivar capitais ociosos fosse se tornar uma parceria estratégica e geopolítica de enfrentamento dos quatro grandes em relação ao bloqueio da agenda do desenvolvimento no ambiente neoliberal. Qualquer um que leu Han-Joon Chang conhece a tese do “chutando a escada”. Países que chegaram ao topo do desenvolvimento procuram propositadamente chutar a escada dos que querem seguir o mesmo caminho para que não tenham concorrência. Brasil, Índia, Rússia e China agora furam o bloqueio do acesso à escada com uma parceria estratégica inédita e que assusta o Ocidente desenvolvido (leia o editorial do Especial deste fim de semana da Carta Maior). Com um agravante: é praticamente impossível aos EUA interferir em regimes como o chinês. Mas contra os governos da Rússia, Brasil e Índia é mais fácil…

Quarto argumento: finalmente, os métodos de combate.

As leituras de Naomi klein ou Gene Sharp são instrutivas. A primeira mostra como a “doutrina do choque” foi usada em geopolítica, provocando crises e planejando reconstruções mais alinhadas aos interesses das corporações econômicas. Sharp fala da luta contra ditaduras com métodos de não agressão. Recomenda usar e abusar das redes sociais. A chamada “primavera árabe” tornou-se uma peça publicitária contra regimes nacionalistas. Robôs na internet, propaganda disfarçada de protesto, incitação das oposições (‘você não sabe ainda se vai  à Paulista, domingo? Qualquer dúvida, entre em contato com o Whatsapp da Folha …). É preciso muita organização e dinheiro para trabalhar com todas essas variáveis. Quem financia? A venda de camisetas da ONG ‘Vem para a rua?”.

Gerar clima para destituição de um regime não é espontâneo. Essa ‘espontaneidade’  faz parte de um planejamento. Sharp mostra como é possível acabar com um regime sem disparar um tiro. Às vezes escapa alguma coisa, como na Líbia… Ossos do ofício. Mas o novo padrão ‘institucional’ foi testado e bem usado pela CIA no Oriente Médio. Pode funcionar no Brasil? Ou algum ingênuo ainda acha que estamos diante de uma “ação cívica” em prol da felicidade e da lisura da pátria? Mas, um detalhe não pode passar desapercebido: no Brasil as forças sociais já se manifestaram e as eleições decidiram. E o fizeram recentemente dando a quarta vitória presidencial a uma agenda progressista. A conspiração e clima de ‘desgoverno’ pode revogar isso?

É essa a disputa em curso.

Crédito da foto: Roberto Stuckert Filho/EBC

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