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Foto do escritorLuiz Gonzaga Belluzzo, André Luiz Passos Santos , Nathan Caixeta e Murilo Tambasco

A Folha e a privatização: “perdeu, mané, não amola”


Para a infelicidade de quase todos, o fascismo de mercado não pode, não faz e não quer o desenvolvimento social e econômico do país. Importa extrair riqueza – o mais rapidamente possível – daquilo que já foi feito ao longo de décadas de industrialização e luta pela soberania nacional. A Folha é porta-voz desta visão.

O jornal Folha de S. Paulo publicou em 25 de agosto seu editorial (“O que a Folha pensa”) refletindo sobre a temática das privatizações, tentando recolocar na ordem do dia uma agenda derrotada em 2022. Os alvos escolhidos foram a Petrobras, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, o “trio de gigantes” que, segundo reza o jornal, “deve ser o próximo tabu a ser derrubado no bem-sucedido programa brasileiro de desestatização”.


Capa da Folha de domingo 25/08/2024.

O editorial começa exaltando as privatizações realizadas a partir do Programa Nacional de Desestatização, lançado por Fernando Collor em 1990 e parte do trágico Plano Brasil Novo. A privatização de empresas e serviços públicos virou um vício nacional, religiosamente alimentado pelo financismo, suas mídias e seus economistas.


O conjunto de bens e serviços outrora produzidos pelo Estado e endereçados ao bem-estar público adquire outra finalidade: engordar margens e massas de lucros do setor privado.

O dinheiro que vai para os cofres do governo é estéril, não pode ser investido em outros setores e serve apenas para amortizar a dívida pública, além de eventualmente estancar crises de balanço de pagamentos, como no período do Plano Real.


As quantias arrecadadas ficam abaixo do valor real da empresa privatizada, isto é, do potencial de lucros futuros trazidos a valor presente. Ou seja: as grandes empresas (em geral estrangeiras, e, às vezes, estatais estrangeiras) adquirem o ativo nacional com desconto e financiamento subsidiado, lucrando na partida e aumentando seus lucros conforme manipulam preços, custos e margens para maximizar o valor repassado ao acionista.


Os benefícios prometidos - aumento de eficiência produtiva, inovação tecnológica, preços mais baixos ao consumidor etc. - ficam somente nos livros-texto que martelam a pregação sobre a concorrência perfeita e o equilíbrio intertemporal. Na prática, as coisas são bem diferentes.


Os gestores da antiga empresa pública, agora privada, aumentam seus salários indiscriminadamente. A diretoria da Eletrobras aumentou em 10 vezes os rendimentos dos membros do conselho de administração (que votaram majoritariamente pela desestatização) tão logo a empresa foi privatizada.


A preocupação ambiental custa caro e opõe obstáculos na busca pelo lucro. Não podemos deixar de lembrar da Vale e sua responsabilidade nos casos de Brumadinho, Mariana e Maceió.


Os ativos dos bancos estaduais e suas linhas de crédito acessíveis às empresas nacionais e ao consumidor comum engordaram os balanços dos grandes bancos, e suas dívidas com a União foram convenientemente reequacionadas com deságios expressivos, conforme revelou o PROER. As concessões de crédito direcionadas e de longo prazo se transformaram em crédito caro com taxas flutuantes e de curto prazo.


O governo, que em alguns casos mantém participações minoritárias nas empresas, assiste impotente à redução dos investimentos e à desidratação das finalidades públicas das empresas privatizadas. O acionista da grande empresa passa a receber gordos dividendos (não tributados, aliás). A nova controladora abre logo um largo programa de demissões, espremendo ao máximo seus custos e restringindo os reajustes salariais. Depois, ninguém se importa com a qualidade do serviço. O consumidor de energia elétrica que o diga.


Parece existir, na compreensão dos responsáveis pelo editorial, apenas a dicotomia “Estado x mercado”. De um lado, o Estado corrupto, ineficiente e gastador. Do outro, o setor privado responsável, eficiente e transparente. Como se fosse possível organizar o mercado sem a ação do Estado.


Segue a cantilena:


“Esse aparato é custosamente mantido sob o comando do Estado, sobretudo, por interesses políticos e sindicais. Invocam-se pretextos nacionalistas e estratégicos para preservar o poder de lotear cargos, distribuir favores e bancar projetos de retorno duvidoso, para nem falar em lisura.


Petrobras e Caixa, especialmente, são assíduas no noticiário sobre aparelhamento e má gestão. Ajustes legislativos nos últimos anos trouxeram melhora da governança, sim, mas continuam sob assédio das forças reacionárias e intervencionistas à esquerda e à direita, sujeitos a retrocessos.


O caminho a seguir é a privatização criteriosa, com modelos que incentivem a competição e regulação que salvaguarde os interesses dos consumidores. Há um trabalho de convencimento a fazer e um longo processo de conhecimento a ser aproveitado.”


Curioso notar que o “intervencionismo” destacado acima jamais incomodou a Folha durante o governo militar que a mesma Folha apoiou, inclusive com recursos materiais. Razão pela qual seu discurso privatista não pode ser outra coisa senão hipócrita e autoritário.


Privatizar a Petrobras, a Caixa e o Banco do Brasil é um sonho antigo do rentismo. Imagine o leitor que a participação do setor bancário público cresce consistentemente acima da participação privada, em especial no crédito habitacional, rural e nas linhas de financiamento de médio/longo prazo, com taxas de juros pelo menos 50% menores que as praticadas pelos bancos privados (segundo estudo do DIEESE), constituindo a única barreira consistente contra a elevação do já abusivo spread bancário praticado no Brasil, visto que o Bacen, em tese o regulador do mercado financeiro, é totalmente submisso aos interesses dos regulados.


Nas crises recentes, das quais somente agora estamos nos recuperando efetivamente, não fossem os bancos públicos elevando seus volumes de crédito, enquanto os bancos privados os reduziam, a depressão seria ainda pior. Não se trata, de modo algum, de ineficiência, aparelhamento ou corrupção, mas de submeter o interesse público aos vícios privados de nossa elite financeira.


O caso da Petrobras é ainda mais escandaloso. Não bastasse a Folha se alinhar ao lavajatismo na primeira hora, ajudando a destruir a reputação da empresa e paralisar os investimentos no pré-sal, foi grande entusiasta da política de Preço de Paridade Internacional (PPI), criadora da farra especulativa com os preços das ações da companhia aqui e lá fora.


A Folha ajudou a demonizar a reversão das políticas de preços e de dividendos que haviam criado uma situação inédita entre as empresas do setor petrolífero mundo afora: distribuir 100 vezes mais em dividendos do que novos investimentos, chegando a distribuir 99% de resultados inflados pelos preços cotados em dólar pagos pelo consumidor.


As refinarias privatizadas a preços de retalho constituem monopólios regionais, o que permite que operem com preços acima dos praticados pela estatal. Em benefício de quem? Do público, como diz a Folha, certamente não.


O autoritarismo privatista é hipócrita. Estranhamos a Folha falar em “lisura” e transparência que, afirmam, sobram no setor privado e inexistem no setor público.


Não consta nos registros do jornal um editorial sequer exigindo punição aos acionistas controladores das Lojas Americanas e aos gestores responsáveis pelo escândalo que lesou financeiramente milhares de empregados, consumidores, fornecedores e pequenos investidores.


No único editorial sobre o caso, em 13 de janeiro de 2023, a Folha se limitou a apoiar as investigações e pedir punições para a empresa. Algo em relação aos responsáveis e beneficiários da fraude? Oito dias depois vem a resposta em artigo elogioso sobre o trio de acionistas majoritários cuja reputação, abalada pelo escândalo, preocupou a Folha: “crise da Americanas ameaça reputação de bilionários brasileiros”.


De volta aos instintos privatistas da Folha, devemos ao leitor sintetizar a teoria econômica por trás dos moralismos e hipocrisias do fascismo de mercado.


A ideologia liberal que a sustenta entende que a industrialização brasileira foi um equívoco monumental, empurrada artificialmente pelas mãos do Estado e sustentada à custa de um protecionismo causador de distorções insuportáveis.


Segundo eles, posta a casa em ordem, haverá uma regeneração espontânea dos mecanismos fundamentais da economia de mercado. As forças de longo prazo promoverão a eficiente alocação de recursos em cada momento e ao longo do tempo. Haverá poupança suficiente para financiar os investimentos, desde que as taxas de juros reais, formadas em mercados financeiros desobstruídos, sejam capazes de exprimir a preferência da comunidade.


O crescimento será estável e duradouro e a taxa de desemprego será fixada no seu nível “natural”. A distribuição de renda corresponderá à contribuição efetiva de cada um à formação do produto anual.


A eficiência dos mercados é uma ilusão saborosa, mas esse “equilíbrio natural” não existe. Nelson Rodrigues nos alertou sobre a torpeza das unanimidades. Se todos pensam que o mercado é eficiente, isso diz mais sobre a eficiência da pregação do que sobre a crença em si, e nada diz sobre o etéreo deus-mercado. Uma economia “equilibrista”, “natural”, de “concorrência perfeita” e sem incertezas. Onde existe?


Negar o papel do Estado para o desenvolvimento social e econômico, ou tentar reduzi-lo a um carimbador de contratos privados, vai muito além de uma corrente de pensamento. Significa tomar partido dos endinheirados. Ninguém fala ou escreve abertamente sobre ser a favor de que os ricos fiquem mais ricos às custas do restante da população. Basta dizer que os vícios privados conduzem ao bem-estar geral e que, no longo prazo, tudo estará em equilíbrio.


Preferimos, no entanto, relembrar as considerações de Keynes sobre a relação Estado-mercado: “O importante para o governo não é fazer as coisas que os indivíduos já estão fazendo, e fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior, mas fazer as coisas que atualmente eles não podem fazer.”


Para a infelicidade de quase todos, o fascismo de mercado não pode, não faz e não quer o desenvolvimento social e econômico do país. Importa extrair riqueza – o mais rapidamente possível – daquilo que já foi feito ao longo de décadas de industrialização e luta pela soberania nacional.


Privatizar não significa ampliar a capacidade produtiva, mas apenas transferir capacidades já instaladas. Não significa aumentar a eficiência – exceto na extração de lucros – e não traz benefícios ao público, apenas aos gestores de riqueza da Av. Faria Lima, sempre ansiosos para alocar capitais ociosos sob sua gestão em negócios já instalados, lucrativos e de baixo risco, ou não investiriam seu rico dinheirinho.


Não é a ineficiência estatal que atrai o interesse privatista, mas, ao avesso, sua eficiência. Não à toa, três empresas eficientes e lucrativas estão sob a mira da Folha. Todos sabemos, inclusive a Folha, quem paga a conta e quem se banqueteia nessa festa.

 

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Unicamp e autor de vários livros. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e de Ciência e Tecnologia de São Paulo. Formado em Direito e Ciências Sociais pela USP, é pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Cepal e doutor em economia pela Unicamp.


Nathan Caixeta é economista, mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.


André Luiz Passos Santos é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.


Murilo Tambasco é graduado em Economia pela Facamp e pesquisador do Núcleo de Estudos em Conjuntura (NEC-Facamp).


Crédito da foto da página inicial: Petrobras/Divulgação.

 

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