top of page
fundo.png
  • Foto do escritorBrasil Debate

A fantasia da ilha

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo do último dia 10, Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central do Brasil (2003-2010), apresenta uma perspectiva peculiar a respeito da recente vitória do Partido Conservador na Inglaterra.

Obviamente interessado em defender a agenda da ortodoxia liberal e a panaceia da austeridade, o ex-Bacen procura transformar o resultado eleitoral britânico na prova de que “cortes de despesas bem feitos e reformas geram importante choque de confiança, que geram investimentos, que geram crescimento e empregos. Geram também, como vimos, grandes triunfos eleitorais“.

Ao que acrescenta: “na busca de equilíbrio fiscal, os conservadores têm tido particular cuidado em evitar aumento de impostos, principalmente os que prejudicam a produtividade, lição importante ao Brasil neste momento.“

Ora, Dr. Meirelles não podia estar mais distante dos fatos – políticos e econômicos – que estiveram por trás da eleição britânica.

Senão, vejamos:

Produtividade:

O ONS (IBGE deles) acaba de divulgar que após quatro anos de austeridade praticada, sem constrangimentos, pelo governo de David Cameron a produtividade da economia britânica continua estagnada em patamar inferior ao de 2007, registrando no último trimestre de 2014 uma queda de 0,2%. Na comparação histórica, o quadro é ainda mais dramático: é a pior média anual desde 1946! (leia aqui).

Emprego:

De fato, a taxa de desemprego tem declinado na ilha, mas infelizmente tal queda não tem nada a ver com a austeridade de Mr. Cameron e seu impiedoso Ministro G. Osborne. Resulta antes de mais nada de uma cínica mudança na legislação trabalhista que criou o “contrato zero hora“.

Trata-se de uma modalidade de contrato de trabalho por meio da qual o trabalhador fica à disposição da empresa e, caso seja necessário, é convocado para trabalhar nos momentos de pico. Da parte da empresa, enquanto não utilizar o trabalhador, fica desobrigada de qualquer pagamento de salário ou benefícios trabalhistas.

Por conta dessa engenharia contratual que transfere o risco da atividade capitalista para o trabalhador, centenas de milhares de britânicos passam os dias marcando o passo,  sem que entretanto sejam considerados desempregados.

Segundo as estatísticas oficiais, estima-se que em 2014 cerca de 1,8 milhão de empregos no Reino Unido (aprox. 5% do total) eram regidos por contratos do tipo “zero hora“ e que 700 mil trabalhadores estavam nessa condição.

Reunindo as duas informações, conclui-se que, frente à absoluta falta de certeza quanto às possibilidades de pagar as contas no final do mês, os trabalhadores se dispõem a ter dois ou mais empregos no esquema “zero hora“, aguardando no sofá o chamado da empresa A, B ou C. Segundo estudo realizado pela CIPD, uma gigante do ramo de intermediação de mão de obra, apenas 38% dos trabalhadores “zero hora“ trabalham mais de 30 horas semanais.

Não por acaso, os salários dos trabalhadores britânicos vêm caindo ano após ano, registrando a pior média anual entre os países do G20 desde a crise de 2007 (leia aqui).

Votos

Assim como as estatísticas de emprego, também os resultados das urnas devem ser analisados com especial cuidado, pois houve grande discrepância entre a composição final do parlamento e o volume de votos dado a cada partido nas urnas.

Embora os Tories (conservadores) tenham conseguido eleger uma portentosa bancada de 331 deputados (50,9%) e os trabalhistas apenas 232 cadeiras no parlamento (35,7%), o percentual de votos em cada um dos dois partidos foi, respectivamente, de 36,9% e 30,4%, uma diferença de apenas 6,4%.

Para melhor entender esses números é preciso lembrar de dois fatores:

1º) a singularidade do sistema eleitoral britânico – parlamentarismo com voto distrital em um reino dividido em quatro nações (em cada uma delas um partido diferente saiu vencedor)

2º) a campanha eleitoral foi marcada pela polarização política. Por um lado os partidos nacionalistas de esquerda conseguiram eleger um bom número de deputados em seus países (especialmente na Escócia ocorreu um verdadeiro arrastão, com o SNP abocanhando 40 deputados trabalhistas e 10 liberais democratas num total de 59 cadeiras) e, por outro, os votos da centro-direita (antes concentrados no Partido Liberal Democrata) fluiram como ovelhas para o quintal dos Conservadores, cuja campanha lançou mão do discurso do medo, alegando que uma eventual vitória da oposição (coalização entre trabalhistas e nacionalistas de esquerda) significaria entregar o futuro da ilha aos “radicais“ da Escócia.

Ou seja, longe de ser o coroamento da política econômica ortodoxa, como gostaria o Dr. Meirelles, o que ocorreu no Reino Unido (?) foi um duplo movimento:  fragmentação do voto de esquerda (com migração dos votos da centro-esquerda trabalhista para a esquerda mais radical e anti-austeridade da Escócia e do País de Gales) e uma concentração dos votos da direita no Partido Conservador, conduzidos pelo medo e pelo discurso xenófobo e antieuropeu que emergiaram justamente com o mal-estar econômico e social dos seguidos anos de austeridade.

Nada a comemorar, nem muito menos copiar em terras brasileiras.

Comments


bottom of page