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A esquerda e a ameaça da conciliação no Brasil pós 2018

O debate sobre a posição do ex-presidente Lula numa possível eleição em 2018 suscita uma análise crítica sobre riscos socioeconômicos da chamada conciliação como forma de garantir estabilidade política ao país. Caso esta conciliação suponha manter políticas econômicas neoliberais, a eleição representará a complementação do golpe jurídico-parlamentar de 2016. Significará o êxito de um retrocesso sem precedentes ao qual o Brasil foi submetido em curtíssimo espaço de tempo, do tamanho de uma intervenção de natureza colonial, cuja aceitação pela sociedade brasileira merece reflexão sobre o estado de letargia a que a nação parece ter chegado e sobre os caminhos de superação que a esquerda deve oferecer.

O físico Carl Sagan se notabilizou descrevendo o comportamento de sociedades pré-científicas que se guiavam por crenças de fácil assimilação que mobilizavam as populações. Exemplo famoso dessas crenças é a de povos que, tomados pelo pavor de que o eclipse do sol fosse motivado por uma entidade que devoraria o astro, iam às ruas fustigá-lo com sons de tambores e gritos, e comemoravam como salvadores da lavoura quando o eclipse terminava.

Séculos mais tarde, no Brasil, grandes contingentes, chamados por setores influentes da sociedade, vestiram as cores nacionais empunhando panelas e apitos, e produziram barulho para afastar o mal projetado na figura do Partido dos Trabalhadores, ensurdecendo o bom senso e aplaudindo uma caçada jurídica sem precedentes. Demonizaram uma esquerda que mal conheciam e entregaram o país a lideranças da direita que advogaram que os males da sociedade estavam encarnados no PT e aliados. Colhendo recessão, desemprego e violência, dividem-se agora entre opções fascistas e a frustração com qualquer projeto político.

Nesse cenário, articulistas progressistas analisam os desafios da esquerda, mundial e brasileira. Enquanto a esquerda europeia, debilitada pelo esforço de se desvincular da experiência soviética, tenta florescer em resposta aos abusos da austeridade em favor dos mais ricos, a brasileira conta baixas e busca se reagrupar sob o bombardeio implementado segundo os protocolos de medidas privatistas de choque e medo da “economia do desastre”.

Sitiada, grande parte da esquerda brasileira projeta na liderança de Lula a forma de contrapor, às políticas de Estado mínimo, um mínimo de Estado, como resposta contra as novamente crescentes calamidades sociais do povo brasileiro. Involuntariamente, dá uma senha para a escalada do golpe, indigitando um indivíduo, mais do que um programa de governo. Ademais, enquanto um programa serve como referencial permanente para a luta política, a indicação de um candidato pode sinalizar aceitação tácita de que o atual governo instalado no Planalto pode realizar seu serviço até 31 de dezembro de 2018.

Existem dúvidas sobre a capacidade de Lula atender aos segmentos que estão vendo sua condição de vida se deteriorar aceleradamente, em decorrência de políticas macroeconômicas de austeridade e reconcentração de renda que desfazem o que o Banco Mundial chamou de revolução silenciosa, com uma “impressionante redução da pobreza”. Dado o tamanho do retrocesso, políticas que priorizem o equilíbrio fiscal não serão resposta à altura da avalanche de retrocessos contra as classes médias e baixas.

Seguindo a recomendação de Sagan, e também de Celso Furtado,  a esquerda deve trazer a ciência ao debate. Sobre a gestão macroeconômica, deve se afastar do receituário de políticas neoliberais, orientando-se pela conclusão científica, fartamente documentada por organismos como a Unctad e a Cepal e por economistas heterodoxos, de que reformas e políticas neoliberais não são pré-condição para o desenvolvimento econômico.

É crucial nos valermos de nossa experiência e do exemplo de outras sociedades para evitar repetir erros. Com Lula sob risco de ser preso politicamente para ser anulado, como tentado com Mandela na África do Sul, mas em idade mais avançada, a esquerda tem lições valiosas a reter da história econômica recente.

Tal como na administração da transição para um modelo sem privilégios formais do apartheid, não há dúvida de que as elites no Brasil aproveitarão a interrupção da democracia para privatizar, reter e se necessário expatriar toda riqueza que conseguirem. Os casos da Petrobras e da Eletrobrás explicam, por isso, muito da sustentação de uma aliança política em torno de um presidente de popularidade nula. Há ainda muita riqueza pública passível de ser privatizada, das reservas de petróleo às reservas cambiais, e uma transição para um governo eleito pelo povo depende, para as elites, da viabilidade de uma transição que não reverta seus ganhos.

Nesse cenário, caso vença as próximas eleições, um desafio de Lula ou de qualquer candidato de esquerda será evitar uma “síndrome de Mbeki”, que é, pelo líder político sul-africano (como Mandela), a adoção de discurso popular e progressista, mas, pelo seu staff, em papel análogo ao braço direito e sucessor de Mandela, Thabo Mbeki, a negociação a portas fechadas de um governo conciliador e neoliberal.

Como aponta o economista Patrick Bond, as consequências socioeconômicas do neoliberalismo adotado sob a conciliação de Mandela, apesar da força simbólica de sua chegada ao poder, são didáticas. Após anos de democracia e políticas de compensação, o país apresentava desempenho pior do que aquele ao fim do apartheid em diferentes indicadores socioeconômicos, sendo o legado econômico de Mandela marcado por medidas tomadas em virtude dos pactos de Fausto assumidos em nome da estabilidade política e que foram decisivos para o fracasso nesses indicadores.

O quadro social sul-africano aponta para uma característica de várias transições para regimes democráticos, que é a transição política, com suas dimensões de representação popular, ocorrer sob o preço de condicionalidades econômicas que preservam poder dos grupamentos que formalmente se retiram do assento presidencial ou da liderança da casa legislativa.

Em 2003, importantes quadros do governo Lula trabalharam como Mbeki, costurando alianças e assumindo compromissos de natureza conservadora de conciliação entre interesses de classe por meio de uma transição para um modelo com mais foco na redução da pobreza, mas sem alterar os pilares conservadores da gestão econômica. Essa conciliação foi defendida para evitar ataques das forças que eram retiradas do poder pelo voto popular, em especial por agentes financeiros nacionais e estrangeiros. Com as melhoras históricas nos indicadores socioeconômicos sendo revertidas por políticas de austeridade iniciadas pelo próprio PT na tentativa vã de reestabelecer a conciliação com a qual governara, cabe reconhecer que essa fórmula se esgotou.

No país em que o descobrimento não foi um descobrimento, a independência garantiu a influência da metrópole, a Abolição não aboliu condições de trabalho escravistas, a República não trouxe o republicanismo ao Estado e crimes da ditadura foram anistiados, a modesta tentativa de conciliação de interesses entre pobres e ricos nas políticas públicas no início do século XXI não resistiu à desconcentração da renda e está sendo sucedida por brutal reconcentração do poder pelas elites.

Nesse quadro, um futuro governo de esquerda no Brasil deve repelir acordos econômicos como os firmados à margem das históricas comemorações populares e que deram segurança e poder ao regime branco e segregacionista que se encerrava com Mandela. Obstáculos a serem enfrentados no Brasil hoje são evidentes, e incluem a orientação e formação técnica dos funcionários do Estado, que precisam ser reeducados fora da estreiteza de compromissos e falta de cientificidade da doutrina ortodoxa liberal que faz burocratas agirem contra o próprio Estado.

Inclui reconhecer que é sustentável e necessário elevar o gasto público mesmo causando déficit fiscal, sem o que o país seguirá vendo recuar brutalmente o PIB per capita, o que demanda reformar leis fiscais que se valem do apelo à moralidade para obrigar gestores públicos a adotarem políticas de arrocho e fazerem convenientes privatizações – sendo imperiosa a revisão de privatizações danosas feitas sob a égide de um governo ilegítimo.

Não menos importante, cabe rever o mandato e direcionamento do Banco Central e do Ministério da Fazenda, reformando-se a governança na determinação de variáveis chave da política econômica.

É central ainda a um projeto de esquerda reverter a estrutura tributária que penaliza as classes médias e baixas e aplicar políticas de foco territorial explorando sinergias inter-regionais tendo como vetores de desenvolvimento grandes e pequenos agronegócios (etanol, proteína animal), base industrial de defesa, biotecnologia, indústria de óleo e gás, construção naval, logística, obras públicas e exportações de manufaturados.

Por fim, a política externa deve ser pautada pelo respeito à autodeterminação e pela busca de espaços econômicos de interesse do Brasil, sem adesão a acordos que limitem o espaço de política sem contrapartidas materiais, repelindo que se recorra à mística melhoria do ambiente de negócios como justificativa para acordos que não trazem ganhos para o conjunto da população.

Para evitar erros do passado, seus próprios ou da África do Sul, um governo de base popular deve se afastar de opções de meio termo em política econômica. Respeitando o que tiver sido legitimamente contratado e for do interesse nacional, o país precisa retomar o rumo de desenvolvimento econômico substituindo o modelo de concentração de renda que foi reativado pelos supremacistas do mercado financeiro, tendo como símbolos nefastos a reforma trabalhista e o teto de gastos. Num cenário sem o boom de preços de commodities de que o país se valeu no passado recente, os mesmos resultados socioeconômicos não serão alcançados repetindo-se as mesmas escolhas. Uma condução progressista, de esquerda, pressupõe disposição para que o bolo seja mais bem repartido mesmo que ele não esteja crescendo.

Não adiantará uma esquerda que se limite a lamentar o destino e esperar o arrebatamento. É preciso tomar as rédeas da história e reformar a atuação do Estado, removendo expressões de submissão ideológica aos interesses de um mercado financeiro supranacional que coloca em cativeiro as políticas econômicas e cobra alto pelas suas indulgências a algum desenvolvimento econômico. Do contrário, mesmo que em 2018 seja eleito um governo com discurso progressista, em breve o Brasil estará debatendo o fracasso da esquerda, enquanto os beneficiários do golpe de 2016 estarão desfrutando confortavelmente de uma riqueza inflada sob a égide da conciliação.

Crédito da foto da página inicial: Ricardo Stuckert

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