No último Encontro Nacional dos Estudantes de Economia (ENECO) a palavra de ordem foi “desconstrução”, conceito apropriado da filosofia, que reverbera não apenas nos ambientes universitários, mas também nas periferias e nas escolas. Desconstrução é um esforço de superação dos estereótipos e preconceitos que carregamos dentro de nós; é quebrar o conjunto de barreiras morais e culturais que nos impede de aceitar o diferente, oprimindo o outro e criando um ambiente de hostilidade que gera violência velada ou explícita. Machismo, homofobia, racismo e outras formas de preconceito são desconstruídos em um processo contínuo que evolui e não necessariamente se completa. Dessa forma, a desconstrução tem um potencial transformador e pode abrir um mundo diferente conforme essa nova geração aceita esse desafio.
Mas a desconstrução, como processo transformador, não precisa ficar restrita ao plano da identidade, dos costumes e das escolhas individuais. Há toda uma racionalidade econômica que precisa ser desconstruída. Vivemos em um sociedade onde o egoísmo é virtude, o individualismo é norma e a concorrência é condição de sobrevivência. Sem perceber, somos absorvidos por uma lógica que desativa as preocupações coletivas, desprestigia os bens públicos em detrimento dos bens privados e dilui a própria ideia de cidadania social. A essa lógica dá-se o nome de neoliberalismo.
Na disputa entre as pessoas, o mercado é um juiz supostamente neutro que arbitra entre os vencedores e perdedores. Somos induzidos a achar que o mercado atribui a cada um o que cada um merece. Consequentemente, naturalizamos a desigualdade social: privilegiados dormem com a cabeça tranquila e excluídos sonham em se dar bem na desenfreada luta pelo sucesso. Se a culpa pelo fracasso é individual, a sociedade não precisa se responsabilizar pela sorte dos indivíduos, nem pela delinquência, nem pelo desemprego, tampouco pela pobreza.
Preocupados com o auto interesse e com a concorrência do dia a dia, ficamos conformados e insensíveis à injustiça. O resultado disso é um grande mal-estar social e um sentimento de frustração generalizado que se manifesta no surgimento de diversas patologias sociais, dentre elas a intolerância e ódio ao diferente. O mito da meritocracia tende a naturalizar o que é socialmente construído, daí a necessidade de desconstrução. Se o pobre é pobre porque merece, não há nada a ser feito, mas se a sociedade toma sua cota parte de responsabilidade, a conversa muda.
No Brasil, essa racionalidade neoliberal vai na contramão dos valores postos na Constituição de 1988, assim como as instituições que dela decorrem. O que é o SUS senão um pacto de solidariedade entre nós? Um acordo que garante, por exemplo, que se algum de nós contrair uma doença grave, as demais pessoas vão dividir a conta e garantir o tratamento. Esse tratamento pode ser muito caro, mas a conta será dividida. A alternativa ao SUS é um pacto individualista, onde é cada um por si. O doente não tem ajuda dos demais e a saúde é mercadoria como outra qualquer, que só é consumida por quem tem recursos. E é para esse pacto individualista que o Brasil caminha.
Sim, o golpe é a tentativa de imposição de um pacto social individualista e o fortalecimento da subjetividade neoliberal. E o caminho para isso é a transformação das instituições por meio de reformas que, em seu conjunto promovem a desconstrução de redes de proteção social. Diluir as obrigações do Estado de garantir direitos sociais e trabalhistas é o mesmo que retirar as responsabilidades coletivas pelas mazelas sociais. Essa relativização do papel do Estado expõe as pessoas ao risco de não terem acessos a bens sociais básicos, como saúde e educação, assim como fragiliza a posição dos trabalhadores que devem adotar as regras do jogo, trabalhar mais, ser mais competitivos etc. Ou seja, o golpe é também o reforço dos valores neoliberais da concorrência e do individualismo.
Resistir ao atual cenário e às forças perversas do neoliberalismo é desconstruir as barreiras que impedem, de forma opressora, a coletividade. Dentre elas o discurso econômico que prega que o problema do Brasil é o excesso de gasto social, que o orçamento não cabe no PIB e de que a Constituição de 1988 é muito benevolente. Esse discurso é acompanhado de metáforas machistas como a da “dona de casa”, que compara o orçamento público com o doméstico e atribuiu ao governo a “postura de marido” para evitar a gastança desenfreada.
“Colocar a casa em ordem”, é na verdade, colocar um projeto de país não referendado pelas urnas, é refazer o pacto social, sem consultar a população. Também é preciso desconstruir o discurso moralista de que no passado vivemos excessos e agora temos que passar por sacrifícios, como se o Brasil fosse uma grande fábula da cigarra e da formiga. Nós sabemos quem são os sacrificados.
Não se trata, aqui, de emprestar, sem mediação, o conceito de desconstrução social para o âmbito econômico. Há um claro entrelaçamento entre a racionalidade econômica e as questões gênero, raça e classe. Para além da subjetividade, as reformas austeras, por exemplo, reforçam as diferenças e as hierarquias, tem especial impacto para os LGBTs, os negros e as mulheres, principalmente quando já trazem uma condição social precária. Quando o Estado se retira da saúde, resta às mulheres “que cuidam por natureza” olhar pelos entes adoecidos renegados. Quando a CLT é rasgada com a reforma trabalhista, resta às mulheres – principalmente negras -, que comprovadamente já ganham menos que os homens, ocuparem os postos mais precarizados. A lógica neoliberal é racista, machista e homofóbica, daí a necessidade de união das esferas de luta.
Desconstruir é dar voz e vez para todos, é entender que nossa sociedade é heterogênea e cada um tem muito a contribuir para a construção de um país melhor, seja pelos conhecimentos teóricos, seja pela prática diária de viver a realidade e enfrentar os problemas cotidianos. E, dentre as nossas tarefas, está a desconstrução da racionalidade neoliberal que pode dar vez à valorização dos espaços coletivos e de uma sociedade mais igual e solidária.
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