Sem mais poder lançar mão do recurso das chamadas “pedaladas fiscais”, o governo recuou no ajuste fiscal que anunciou no início do ano de gerar um superávit primário de 1,2% do PIB e reduziu-o para 0,15% (R$ 8,7 bilhões), no dia 22 de julho, sendo 0,1% de responsabilidade do governo federal e 0,05% dos estados e municípios.
Tal decisão era aguardada pela inconsistência de sua arquitetura e pela oposição oportunista do Congresso às medidas, mas não na dimensão realizada e nem no timing esperado.
O fato é que, apesar da resistência do ministro da Fazenda à sua redução, a área política do governo vinha insistindo em uma meta de 0,6% do PIB, enquanto o Congresso ensaiava aprovar um projeto restabelecendo-a em 0,4%. Uma decisão que, no entanto, esperava-se ser tomada apenas em setembro.
A antecipação do anúncio de redução da meta e de sua dimensão revela que a situação parece ser mais crítica do que a que vinha sendo divulgada pelo governo e considerada pelos analistas.
Considerando que, nessa decisão, o governo deixou brechas para incorrer em um déficit primário no ano equivalente a R$ 17,7 bilhões (0,3% do PIB), caso as receitas esperadas com os projetos de taxação sobre recursos repatriados do exterior, de recuperação de débitos tributários e de leilões de concessões de infraestrutura, estimadas em R$ 26,4 bilhões, não se materializem, permitindo-lhe fazer um “abatimento”, neste valor, da nova meta estabelecida, não se pode contar que essa será atingida.
A redução do superávit também para os próximos dois anos – 0,7% do PIB em 2016 e 1,3% em 2017 -, antes projetada em 2%, e o retorno a este nível apenas em 2018, bem como a perspectiva de que a relação dívida bruta/PIB só começará a se estabilizar em 2017 no nível de 66%, depois de atingir 65% este ano, aguçam essas dificuldades com o ajuste.
Isso porque indica que, do ponto de vista das expectativas do mercado, um cenário de turbulência deve se manter pelos próximos anos, com impactos negativos sobre a economia, diante da desconfiança sobre a política econômica de dar sustentabilidade à trajetória da dívida.
Embora alguns analistas comemorem a redução da meta do ajuste, apontando que tal medida poderá mitigar os efeitos da recessão, que tem avançado mais rapidamente do que o esperado, este recuo em nada deve contribuir para isso, pois resulta mais do reconhecimento de uma forte frustração das receitas, que desabaram 3%, em termos reais, no semestre, ante a projeção de expansão de 5,6% no ano, do que propriamente de uma reorientação do ajuste para aquela finalidade.
Pelo contrário, com ele deve-se esperar um agravamento das condições fiscais do país, do avanço progressivo da recessão e um aumento das turbulências e instabilidade dos mercados financeiros.
Não que o ajuste, tal como desenhado, fosse capaz de impedir isso, mas a explicitação de seu abandono permite uma leitura, pelos agentes econômicos, que a situação do governo deve piorar progressivamente.
Isso porque, com um déficit nominal, acumulado até junho nos últimos doze meses, batendo na casa dos 8% do PIB e, sem mais contar praticamente com economia de recursos para pagar alguma parcela dos encargos da dívida, que superaram os R$ 400 bilhões nos últimos doze meses, a perspectiva daquele déficit ser ainda maior, torna-se bem provável.
Quando se considera que a estultice do Banco Central deve continuar aumentando a taxa de juros diante do avanço triunfante da inflação, em boa medida de custos, por isso pouco sensível a essa política, a projeção feita pelo governo para a relação dívida bruta/PIB torna-se uma ficção.
Em segundo lugar, porque uma avalanche de gastos públicos deve/pode ocorrer nos próximos anos, perpetuando o ajuste, cabendo destacar:
1.o compromisso assumido com os estados e municípios da entrada em vigor, em 2016, do projeto de renegociação de suas dívidas, o qual deve impor perdas para os cofres da União anteriormente estimadas em cerca de R$ 2 bilhões;
2.o reajuste dos salários do Judiciário, vetado pela presidente Dilma, mas com a oferta de um reajuste de 21% a seus servidores, o mesmo concedido aos funcionários do Executivo;
3.as mudanças nas exigências do direito à aposentadoria pelo INSS, que colocou como alternativa ao fator previdenciário, a fórmula 85/95, a qual, substituída pelo governo pela fórmula progressiva 90/100, ainda assim, deve, segundo estimativas, elevar os gastos nesse campo a partir de 2020;
4.o aumento dos gastos com a educação, que devem atingir 10% do PIB em 2024, atualmente em 6,5%, de acordo com o Plano Nacional da Educação, e dos recursos destinados à saúde pela União, que devem chegar a 15% de sua Receita Corrente Líquida até 2018, atualmente em torno de 13%, de acordo com a Emenda Constitucional n° 86/2015;
Como se isso não bastasse, o governo ainda deverá se defrontar, neste ano, com dificuldades para garantir a prorrogação, num Congresso crescentemente hostil, da Desvinculação das Receitas da União (DRU), com a qual conta para usar “livremente” parcela importante do orçamento.
Mas se o abandono do ajuste primário das contas públicas não abre nenhum caminho para mitigar os problemas da economia brasileira, mesmo porque não se procurou colocar, em seu lugar, alternativas consistentes de política econômica, centradas em reformas estruturais, o fato é que garante, ao país, permanecer numa zona ainda mais turbulenta de instabilidade e de recessão/estagnação nos próximos anos.
Isso porque as aves de rapina do sistema financeiro, diante da perda de confiança na política econômica, descredenciam-na a garantir a sustentabilidade da dívida e a preservação da riqueza financeira.
A perda do grau de investimento do país pelas agências de rating torna-se, assim, uma realidade bem mais próxima, indicando que nuvens ainda mais carregadas avançam em sua direção. O preço a pagar por uma política ortodoxa que, tendo se apoiado num ajuste esquizofrênico para a correção de seus problemas, fracassou tanto em sua formulação como em sua execução.
Crédito da foto da página inicial: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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