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Foto do escritorJaime Tadeu Oliva

A construção de uma antinomia radical no Brasil

Atualizado: 27 de ago.

"Polarização" não dá conta de expressar o que vivemos hoje. O que existe são dois universos próprios, com espaços comunicativos distintos, uma antinomia radical que alimenta mundos que se opõem e que se afastam

Para quem ainda tinha dúvida, as eleições presidenciais e as reações aos seus resultados evidenciam que algo mudou. Provavelmente, mais que turbulências conjunturais, assiste-se o curso de uma transformação social importante. Ela pode não prosperar integralmente, pode desacelerar, ou pode tomar rumos ainda mais surpreendentes, pode muita coisa e pode até se encerrar, mas está cada vez mais difícil identificá-la como uma crise conjuntural.


Olhar para outros países nesse momento é interessante, pois é evidente que não estamos sós nessa “jornada”. Nos EUA fala-se cada vez mais em dois países. Isso é revelado nas eleições presidenciais de lá, há mais de 20 anos. E no caso, o problema não é o fato das votações divididas entre os dois partidos dominantes, mas sim como elas se dividem. Nesse país, há uma nítida ancoragem espacial dos votos, que espelham dois modos de vida, “dois países”, talvez.


Num belo artigo de Jacques Lévy e equipe (Le Monde, 07/11/2020) constata-se por meio de cartografia pertinente uma malha republicana de votos (agora tomada por uma extrema direita escatológica, o “trumpismo”), que é contínua e reticular, pouco densa, que engloba as franjas das áreas urbanas (subúrbios periféricos e exurbs), cidades pequenas e o campo. Nesses espaços a homogeneidade do voto impressiona.


Nenhum dos 55 condados da Virginia Ocidental e nenhum dos 77 condados de Oklahoma tiveram vitória de Biden. Uma uniformidade esclarecedora. A malha do partido Democrata, por sua vez, é constituída por uma centena de metrópoles articuladas marcadas por intensa circulação de pessoas, de objetos e de ideias diferentes. Está constituída assim uma paisagem nítida que anuncia dois países.


Haverá termos de comparação razoáveis com o Brasil tomando como referência nosso processo eleitoral? Extrema-direita agora também temos e de forma inaudita, embora ainda se insista que já estava por aqui. Nos termos atuais, com suas proporções e engajamento, não estava. Por outro lado, mesmo que a distribuição dos votos no Brasil (nas eleições presidenciais de 2022) não forme ainda uma paisagem tão dicotômica quanto à norte-americana, esse desenho está se esboçando.


No Brasil o voto interiorano, de um “interior moderno”, é avassalador para a extrema-direita e uma grande parte dos votos nas grandes cidades pertence ao campo progressista. Aliás, nos centros urbanos maiores a votação é sempre mais heterogênea, o que é expressão de sociabilidades e espacialidades mais complexas.


Tanto nos EUA quanto no Brasil, delineiam-se dois modos de vida, grosseiramente falando, revelados pela ancoragem espacial dos votos e também pela existência de dois espaços comunicativos distintos. O que significa circuitos próprios de comunicação e uma irradiação de informações e de ideias que arquitetam mundos próprios. Dois espaços e dois espaços comunicativos expressam uma fratura social (Luciana Salazar Salgado e Jaime Oliva in Espaço Comunicativo e Fratura Social. Belo Horizonte: Fino Traço).


Quando se pensa numa sociedade conflitada, com hierarquização de classes, fragmentada, ainda estamos pensando “num único mundo”, mas talvez isso já não faça mais tanto sentido e o quadro de crise política que vivemos (que é na verdade uma crise social, uma crise grave no vínculo social) expressa uma divisão em dois mundos que não é captada nem pelas palavras polarização, ou mesmo divisão. Talvez seja melhor nos referirmos à construção de uma antinomia radical que alimenta mundos que se opõem e que se afastam.


Uma antinomia social se manifesta quando duas representações sociais/coletivas se opõem e se bastam internamente, já que possuem um forte teor identitarista. Em pequena escala podemos popularmente nos referir a “bolhas”, mas na escala de grandes coletividades humanas, e se referindo a um conjunto completo de valores é mais razoável nos referirmos a antinomia, a mundos, especialmente se as representações se radicalizam (no seu bastar, no seu identitarismo) e perdem a capacidade de comunicação com o mundo externo.


Podemos ir mais longe caracterizando as antinomias como voluntárias e involuntárias. Ela pode, por exemplo, ser de iniciativa unilateral (caso brasileiro).  No nosso caso, sob uma chave identitária, organizou-se a direita conservadora preexistente e adicionou (melhor dizendo: engajou-se) ao contingente parcelas enormes de pessoas, da juventude disponíveis na era da psicopolítica e das redes sociais.


A visão extremada desenvolvida nessa identificação se refere às mudanças em fluxo numa sociedade de indivíduos como uma ameaça à sua existência. A existência de seus valores. A reação que alimenta essa vertente da antinomia é a produção de um circuito afetivo de ódio e de revolta, como diz o jurista Pedro Serrano, numa verdadeira tentação de guerra civil.


Em comparação com o voto tradicional conservador, clientelista ou despolitizado como se dizia, surge um voto alimentado por uma psicopolítica feita de angústia e ressentimento, embalados em escatologias conspiratórias delirantes (aos olhos da vertente progressista da antinomia), tudo isso sendo cultivado numa redoma indevassável nos seus espaços próprios (claro, é uma antinomia, tudo faz sentido internamente).


Em resumo, a radicalização da antinomia está nas mentes, quando se expressa na pauta moral: emancipação da mulher X destruição da família; meritocracia X gestão coletiva/pública da vida social; liberdade X democracia (essa última oposição aparece na visão radicalizada do libertarianismo).


A antinomia também está nos lugares e nas formas sociais: urbanidade X homogeneidade; cidade X periurbano; comunitarismo x societal. E também nos espaços comunicativos, que também constituem duas ordens de significação, de validação das verdades, para além dos fluxos próprios de informações. Não vivemos a era das fake news, mas sim de ordens distintas de legitimação dos enunciados e das informações.


Jaime Tadeu Oliva é geógrafo e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Pesquisa temas relacionados às realidades urbanas e às questões tecnológicas nas práticas espaciais.


Crédito da foto da página inicial: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

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