Nos EUA, vem se discutindo muito sobre o encolhimento e o empobrecimento da outrora pujante classe média norte-americana. Há também um intenso debate sobre os efeitos dessa débâcle da classe média na economia.
Com efeito, embora a economia norte-americana venha experimentando algum crescimento pós-crise, com a melhoria de seus indicadores macroeconômicos, a maior parte da população continua a sofrer com o desemprego, o trabalho precário e o decréscimo da renda. Em outras palavras, a economia vai até relativamente bem, mas a população vai muito mal.
Vai mal, e não é de hoje. O desmanche progressivo da classe média norte-americana vem de longe. O gráfico abaixo, feito pela economista Pavlina Tcherneva, com base nos dados de Piketty, mostra a história toda.
A partir do final da Segunda Guerra Mundial e até a década de 1970, a renda média dos 10% mais ricos dos EUA (em vermelho) crescia a taxas menores que a do restante da população (em azul). Os 90% se apropriavam da maior parte do crescimento da renda, embora essa diferença tenha decrescido, ao longo das décadas. Assim, até a década de 1970, os EUA cresciam com distribuição de renda.
Entretanto, a partir da década de 1980, há uma drástica e clara reversão dessa tendência. Com o neoliberalismo e a reaganomics, os 10% mais ricos passaram a se apropriar, de forma crescente, da maior parte do crescimento dos rendimentos.
Desde aquela época, os EUA crescem aumentando a desigualdade. Alguém lá atrás conseguiu convencer a maioria da população que isso era bom para todo o mundo. Boa parte da classe média votou em sua Nêmese.
De fato, uma consequência óbvia desse processo é o empobrecimento relativo e mesmo absoluto das classes médias norte-americanas. Desde 1999, os 90% mais pobres não aumentam seus rendimentos. É isso mesmo. As classes médias e os trabalhadores dos EUA não recebem aumento real há 15 anos. Na realidade, com o decréscimo recente dos rendimentos, as estatísticas mostram que o rendimento médio dos lares norte-americanos é hoje inferior ao de 1989.
Esse empobrecimento se reflete também no mercado de trabalho. Em 1979, o salário mínimo norte-americano era de $9,67 a hora (em valores de 2013). Hoje, ele está em apenas $7,25, apesar do enorme crescimento da produtividade. Alguém lá atrás deve ter achado que o salário mínimo estava muito alto, e ele acabou sendo reduzido em 25%.
A classe trabalhadora organizada não teve forças para impedir esse desastre, pois ela teve a sua espinha dorsal quebrada. Na década de 1970, 25% da força de trabalho no setor privado da economia era sindicalizada. Hoje, esse número caiu para míseros 7%. Em 1970, apenas 10% da força de trabalho dos EUA tinham trabalhos a tempo parcial.
Hoje, esse índice duplicou. Os empregos gerados são, em sua maioria, de má qualidade, precários e mal pagos. Alguém lá atrás deve ter achado que era uma boa ideia terceirizar funções e flexibilizar o mercado de trabalho.
Esse processo de encolhimento dos rendimentos das classes médias e da classe trabalhadora está na origem da presente crise. Incapaz de manter o crescimento do consumo com salários decentes e bons empregos, as classes médias recorreram aos empréstimos lastreados em hipotecas de imóveis. O resto já faz parte da triste história econômica.
Agora, Obama tenta sair da crise com as mesmas políticas que a provocaram. Em vão. O pequeno crescimento obtido beneficia somente os 10% mais ricos, e mais especificamente, o 1% mais afluente. Os 90% mais pobres estão, na realidade, como mostra o gráfico, empobrecendo de forma absoluta.
Segundo Robert Reich, ex-secretário de trabalho de Clinton, a única maneira de fazer a economia beneficiar de novo os 90% seria “mudando a sua estrutura”. Isso implicaria, pelo menos, ter um salário mínimo maior e uma classe trabalhadora mais organizada, que exigisse empregos de melhor qualidade. Também requeria melhores escolas para os 90%, mais acesso à educação superior e um sistema progressivo de tributos.
Reich adverte que os verdadeiros criadores de empregos não são os CEOs, as grandes corporações e os investidores milionários. O dinheiro da lenta recuperação dos EUA está indo todo para essa gente, mas eles apenas especulam, obtendo grandes dividendos nos mercados bursátil e financeiro. O real criador de empregos, de bons empregos e de bem-estar, é o consumo da classe média e da classe trabalhadora, que expande os negócios e os investimentos.
Lembra alguma coisa, não? Exato. Lembra o Brasil dos últimos anos, que tirou 36 milhões da miséria e acrescentou à classe média 42 milhões de cidadãos. O Brasil que aumentou o salário mínimo em 72% e gerou mais de 20 milhões de bons empregos. O Brasil que, mesmo em meio a pior crise internacional desde 1929, tem a menor taxa de desemprego da história e a maior renda média de sua população. O Brasil que vem facilitando o acesso à educação, especialmente à educação superior, para os mais pobres.
Enquanto os EUA e outros países vêm destruindo as suas classes médias, o Brasil, contrariando seu longo histórico de concentração da renda, as expande. Enquanto eles aumentam as suas desigualdades, nós a diminuímos e, com isso, fortalecemos a economia real, aquela que gera empregos, renda e qualidade de vida. Não adianta ter fundamentos “macroeconômicos sólidos” e a população fragilizada. Não adianta a “economia ir bem”, com a população indo mal, como já ocorreu em nosso passado.
Mas tem gente que não gosta. As candidaturas Marina e Aécio estão repletas de economistas conservadores que querem que o Brasil pratique as mesmas políticas paleoliberais que conduziram o mundo à crise, que quebraram o Brasil 3 vezes no regime tucano, e que impõem obstáculos praticamente intransponíveis à recuperação da economia real e ao aumento da qualidade de vida para o grosso da população.
Com a benção do “Banco Central independente” e com o velho auxílio do desmonte do Estado e do encolhimento do crédito público, vão inevitavelmente provocar, caso tenham êxito, a progressiva fragilização das classes médias e da classe trabalhadora.
Resta ver se as nossas classes médias, seduzidas pelo falacioso discurso modernizante e pseudomoralizador de um neoudenismo tardio, vão, nessas eleições, votar a favor de sua própria Nêmese, como fez a hoje perplexa e empobrecida classe média dos EUA.
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