“Os trabalhadores hoje, não menos que o restante da população, são intelectualmente mais bem treinados, mais bem informados e muito menos ingênuos. Eles sabem os detalhes dos assuntos nacionais e as chicanas dos movimentos políticos, particularmente daqueles que vivem da propaganda contra a corrupção”. (MAX HORKHEIMER. Eclipse da Razão. SP: Unesp; pág. 165)
A afirmação acima foi proferida por Max Horkheimer, importante autor da chamada Escola de Frankfurt, em seu livro “Eclipse da Razão” publicado no imediato pós II Guerra. Desiludido com os resultados do desenvolvimento do sistema capitalista no auge do industrialismo, o autor apontou que, desde que a razão se tornou instrumento para a dominação, ela tem-se frustrado em sua própria intenção de descobrir a verdade. Em suas palavras, isso se deve ao fato de que a razão fez da natureza um mero objeto e que fracassou em descobrir o traço de si mesma em tal “objetificação”, presente, em germe, na objetivação primitiva, ou seja, na “contemplação calculista do mundo como presa”.
No entanto, no processo de sua emancipação e satisfação de suas necessidades, o ser humano partilhou o destino do resto do mundo. A dominação da natureza envolveu a dominação do homem. Assim, cada sujeito não apenas tem de tomar parte na sujeição da natureza externa, humana e não humana, mas, a fim de fazê-lo, deve sujeitar a natureza nele mesmo.
A dominação torna-se “internalizada” pelo bem da própria dominação. O que é geralmente indicado como uma “finalidade” – a felicidade do indivíduo, a saúde e a riqueza – passa a ganhar sentido exclusivamente por sua potencialidade funcional, isto é, enquanto insumo material e intelectual para a reprodução do sistema. “Tal abnegação gera uma racionalidade com referência a meios e uma irracionalidade com referência à existência humana”. Portanto, a autorrenúncia do indivíduo na sociedade industrial não tem qualquer finalidade que transcende a sociedade industrial – o que, para Freud, leva à hostilidade à própria cultura.
Esse processo poderia ser identificado na loucura coletiva observada à época nos campos de concentração,tanto como nas “reações aparentemente mais inofensivas da cultura de massa”. Horkheimer observava com desencanto que os trabalhadores, pelo menos os que não passaram pelo inferno do fascismo, iriam aderir a qualquer perseguição a um capitalista ou político que se tenha “destacado da regra do jogo; mas eles não questionam as regras em si”.
De fato, aprenderam a tomar a injustiça social – mesmo a desigualdade dentro do seu próprio grupo – como um fato poderoso e a tomar os “fatos poderosos como as únicas coisas a serem respeitadas”. Suas mentes estão fechadas para sonhos de um mundo fundamentalmente diferente e para conceitos que, em vez de serem meras classificações de fatos, sejam orientados na direção da efetivação real desses sonhos.
No mundo do pós-guerra, após o cataclismo decorrente do nazismo, Horkheimer afirmou que o progresso em direção à utopia estaria bloqueado pela completa desproporção entre o peso da esmagadora maquinaria do poder social e aquele das massas atomizadas. Mesmo antes da mais completa alienação propiciada pelo desenvolvimento e apogeu do capital financeiro, os sintomas dessa desproporção eram evidentes no mal-estar na sociedade: “a hipocrisia disseminada, a crença em falsas teorias, o desencorajamento do pensamento especulativo, a debilitação da vontade ou o seu desvio prematuro para atividades sem qualquer fim sob pressão do medo”.
Uma primeira reflexão sobre as causas da suposta situação de indiferença e baixa resistência à desconstrução do país, no processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no Brasil atual, poderia ser discutida à luz das instigantes questões corajosamente levantadas pelo autor.
Até que ponto as organizações dos trabalhadores teriam vontade e condições concretas para enfrentar as forças coercitivas que reproduzem e sustentam os pilares desse sistema produtivista? Quando estariam elas fortalecidas para exercitar a reflexão crítica e autônoma que um dia já lhes possibilitou lutar para o rompimento com a ordem vigente e imaginar novas formas de vida? Quais novos fatores aprofundam a anomia da sociedade contemporânea no contexto da hegemonia do capital financeiro?
Para o autor, as condições econômicas modernas fazem dos seres humanos uma aglomeração de instrumentos sem qualquer propósito próprios. Tal tendência, embora constantemente contestada por outras contrárias, fortalece o trabalho como “uma força na vida social”, em que a crítica teórica tornou-se supérflua por consequência do enorme progresso tecnológico que prometia revolucionar as condições de existência humana. Assim, o trabalho e o capital estariam igualmente engajados em manter e expandir seu controle.
Enquanto os sindicatos de certas categorias de trabalho têm sido capazes de aumentar seus preços, todo o peso do poder social opressivo recai sobre outras categorias, organizadas ou não. Cabe ressaltar que a desigualdade não diminuiu, ao contrário, às antigas discrepâncias entre o poder social dos membros individuais de diferentes grupos sociais foram somadas outras diferenças que se explicitam nas mais diversificadas formas de preconceitos e discriminações.
Correções excepcionais de salários de funcionários públicos, especialmente aquelas ligadas às carreiras do estado policial – que está sendo vigorosamente articulado no decorrer da interinidade do governo golpista -, ilustram os avanços corporativistas que negam a solidariedade e consciência da classe trabalhadora e reafirmam uma estrutura econômico-social repartida e cooptada para a defesa do status quo. Essas medidas redirecionam o caminho para o aprofundamento das desigualdades sociais já absurdas no nosso país.
Note-se que o período anterior à I Guerra Mundial foi marcado pela crença generalizada de que a sociologia teórica desempenharia um papel construtivo preponderante no progressivo desenvolvimento da sociedade, com narrativas responsáveis por grandiosas ambições de transformação radical do mundo. No entanto, o declínio da teoria e sua substituição pela pesquisa empírica, no sentido positivista, refletiu-se no pensamento político e na vida acadêmica. O conceito de classe, que já teve seu sentido universal, assistiu sua ênfase diluída e sua capacidade explicativa encapsulada em estratificações aleatórias.
Assim, os conceitos teóricos que poderiam vincular a teoria sociológica com o pensamento filosófico foram substituídos por signos para grupos de fatos convencionalmente concebidos. No tocante à estrutura social, para grupos estratificados por níveis de renda que apagaram a compreensão de explorados e exploradores, rebaixando a própria serventia de variáveis como classe média.
Sabemos que, em nossa época, a mentalidade objetiva venera a produção, a tecnologia e a racionalidade, sem qualquer princípio que possa dotar essas categorias de sentido. Ademais, esse ideário espelha a pressão de um sistema econômico que não admite “indultos ou escapatórias”, conforme Horkheimer.
Portanto, a tarefa de criticar e transgredir a ordem não poderá ser um arremedo de conserto superficial dos elementos que parecem disfuncionais, mas sim a crítica profunda e radical sobre o sentido de tudo isso que nos rodeia: conferir um novo sentido para o trabalho, qual seja, o de transformar o mundo não em presa, mas em lócus de convívio e admiração e, ainda, resgatar a noção de labuta, pesquisa e invenção humana como respostas ao desafio da necessidade; e não “ídolos”.
Para as esquerdas emerge o desafio de proclamar, mais uma vez, que somos escravos das pressões sociais que nós mesmos criamos e que nos enredamos nas redes de uma condição ditada pelas “mesquinhas necessidades da ordenação burguesa que nos aprisiona em hierarquias e estruturas desiguais de dominação”. Sendo urgente refletir sobre como a filosofia como método de negação, ou seja, de “denúncia de tudo aquilo que mutila o gênero humano e impede seu livre desenvolvimento” poderá recolocar a utopia na ordem do dia para a classe trabalhadora a partir do caos em que o mundo e as relações dos seres humanos estão imersos nesse principiar do século 21.
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