A intensa troca comercial entre Brasil e China e a maior aproximação entre os dois países com a assinatura de acordos de cooperação bilionários têm provocado debates sobre o quanto essa relação pode ser boa ou prejudicial à economia brasileira. Entre os motivos estão temores quanto a possíveis apetites “imperialistas” da parceira, que cresceu vertiginosamente nas últimas décadas e se tornou a segunda maior economia do mundo.
No artigo anterior, argumentou-se que – mais do que temer – o País deve aprender com os chineses, que souberam dar soluções para seus dilemas de desenvolvimento. Até mesmo para encontrar formas de lidar com a própria China.
Se hoje estamos às voltas com riscos como o de “desindustrialização”, muito em função da perda de competitividade de nossos produtos, vale observar como os chineses buscaram se relacionar com países mais desenvolvidos e suas empresas transnacionais.
Embora muitos creditem a ascensão chinesa à inserção do país nas chamadas cadeias globais de valor, o fato é que o gigante asiático tem investido pesado no desenvolvimento industrial e tecnológico – priorizando interesses do próprio país – e já deixa pra trás aquela imagem “made in China”, de produzir produtos de terceiros e itens baratos e de baixa qualidade.
Em Sistema nacional de inovação, políticas de CT&I e as fronteiras tecnológicas da China (capítulo 3 do Vol. II de Dimensões Estratégicas do Desenvolvimento Brasileiro, que pode ser acessado na íntegra no site do Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, José Eduardo Cassiolato e outros mostram que um aspecto central da estratégia chinesa foi a utilização do acesso ao seu mercado como barganha nas negociações com as transnacionais.
Estas companhias foram obrigadas a implantar atividades tecnológicas no país e licenciar a tecnologia para as empresas chinesas – casos, por exemplo, do setor de informática e indústria automobilística. “Como apenas as empresas locais podiam vender seus produtos na China, a formação de joint ventures tornou-se a principal rota para as empresas estrangeiras investirem na China”, escrevem os autores.
No caso da indústria automobilística, a política industrial exigia como pré-condição para uma joint venture que as empresas criassem institutos para o desenvolvimento tecnológico e que os produtos tivessem o mesmo nível daquele encontrado nos países desenvolvidos na década de 1990. Esse é um exemplo das chamadas “políticas implícitas de inovação”, que foram eficazes para a transferência de tecnologia internacional.
Universidades e defesa
Outra política adotada pela China foi a de incentivar as universidades a criarem e se tornarem acionistas de empresas de tecnologia. Em 2004, segundo Cassiolato e Lastres, as universidades chinesas eram donas de 2.300 empresas com um faturamento anual de US$ 13 bilhões, e um lucro presumido de mais de US$ 650 milhões; somente a Tsinghua University, uma das principais do país, possuía um ativo total de empresas no valor de US$ 2 bilhões em 2004, alcançando US$ 4 bilhões em 2008.
Um exemplo de empresa nascida em universidade é a Lenovo, produtora de computadores e marca conhecida internacionalmente. Ainda hoje, 42,3% do capital da Lenovo são da Legend Holdings Ltd., da Chinese Academy of Sciences.
Outras empresas incentivadas pelo governo chinês são as direta ou indiretamente vinculadas ao complexo produtivo militar do país. Segundo os autores, as necessidades ligadas à defesa impulsionaram os investimentos em capacidade tecnológica. “O princípio Yujun Yumin, que estabelece que o desenvolvimento de um setor civil deve levar em consideração as necessidades do setor de defesa, passou a guiar a política chinesa a partir dos anos 2000.”
Um dos resultados dessa política é o desenvolvimento das atividades aeroespaciais. A partir de 2000, a indústria aeroespacial, que era baseada em cooperação internacional, passou a contar com fortes investimentos governamentais em P&D, que quadruplicaram até 2006. Nesse ano, a indústria do setor na China se tornou a terceira maior do mundo, com valor adicionado de US$ 3,5 bilhões.
Mas, além de incentivar empreendimentos privados, como catalisador, o Estado chinês continuou também como produtor direto nas áreas estratégicas. Segundo dados, em 2005, mais de 40% da produção nacional era atribuída a estatais.
Plano Estratégico, o Penct
Em 2006, o Estado chinês lançou o Esboço do Plano Estratégico Nacional de Médio e Longo Prazo para o Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia 2006-2020 (Penct), que enfatiza a inovação própria, endógena. Foram estabelecidos projetos especiais de inovação, entre eles o desenvolvimento de componentes eletrônicos e software, tecnologias de exploração de petróleo e gás, reatores nucleares avançados, despoluição da água, novas variedades de organismos geneticamente modificados e satélites para exploração lunar.
As áreas de conhecimento relacionadas à sustentabilidade ambiental passaram a ser reconhecidas como estratégicas. Assim, em pouco tempo, e com investimentos de US$ 1,5 trilhão entre 2011 e 2015, a China se tornou líder em diversas tecnologias ambientais, como energia eólica, solar, biomassa, hidrelétrica, geotérmica, tecnologias relacionadas à eficiência energética, entre outras.
Curioso – e essa é a tese dos autores da publicação do Centro de Altos Estudos – é o fato de o crescimento chinês não ser resultado de uma adesão ao projeto capitalista liberal. A trajetória da China mostra uma outra forma de investir em ciência, tecnologia, inovação: menos pontual, mais articulada, orientada por planejamento de longo prazo, com vários agentes incorporados às políticas, com atores coletivos em complementação a atores individuais.
“A ciência e a tecnologia foram consideradas o motor do desenvolvimento nacional. As políticas de inovação aumentaram em número e em alcance. Além de focarem na geração de novos programas de C&T, foram progressivamente alinhando políticas tarifárias, financeiras e fiscais, reforçando uma visão sistêmica de inovação. A geração de capacidade inovativa e a geração de um ambiente propício para o desenvolvimento tecnológico se tornaram prioridade nacional”, diz o artigo.
Assistimos, portanto, emergir uma China moderna, urbana, que prioriza o conhecimento, e de uma forma bem particular. Em resumo, segundo os autores, “o estudo desmistifica a ideia de que a ascensão chinesa deu-se em função da adesão ao credo liberal, mostrando que a mão do governo estava mais presente que a mão invisível do mercado.”
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