Por João Vitor Santos
Publicado originalmente em Instituto Humanistas Unisinos
Tem gente que não gosta de fazer aniversário, talvez porque inevitavelmente esse completar de mais um giro da Terra nos joga diretamente na seara dos pensamentos sobre o nosso passado. Quando falamos de uma nação, ou até de um país, chovem análises sobre o nosso passado, sobre o que somos hoje e o que, quem sabe, muito provavelmente, haveremos de ser no futuro. Ao invés de se render a essas elucubrações, que quase caem na cilada do presentismo, o professor Roberto Pereira Silva faz um movimento distinto ao revisitar o pensamento de Celso Furtado justamente acerca da Independência do Brasil. “Para Celso Furtado, a Independência do Brasil é um evento fundamental, mas que deve ser compreendido em um quadro mais amplo de modificações políticas que marcaram o final do século XVIII e o início do século XIX”, adianta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Silva detalha que Furtado compreende que “a Independência foi feita com uma sociedade polarizada entre grandes proprietários de terras e escravos”. O professor observa, ainda, que Celso Furtado via a independência do Brasil como um projeto inacabado, pois faltava uma autonomia, aquela capaz de ler o mundo, mas aplicando em suas terras somente aquilo que realmente servisse à sua realidade. “Talvez a maior lição da obra de Furtado seja essa de colocar a explicação do Brasil e do subdesenvolvimento como o principal critério de verificação de qualquer teoria. Se ela não explica a realidade, é a teoria que deve ser alterada, modificada, repensada”, reflete. E acrescenta: “a expansão do neoliberalismo no final do século XX fez com que Furtado reforçasse ainda mais a questão da soberania e da autonomia nacional. (…) A perda de autonomia sempre foi vista como um grande prejuízo para o Brasil”.
A partir disso, podemos compreender a centralidade da realidade das agruras de um nordeste ressequido e carcomido pelos interesses daqueles que só pensam na expropriação. “E Furtado não falava disso apenas em termos de decisões econômicas e políticas. A perda de autonomia cultural, ou seja, a imitação dos padrões de consumo e de pensamento criados nos centros do capitalismo iam dificultando cada vez mais as formas de reflexão criativa para sair da crise econômica”, acrescenta.
Roberto Pereira Silva. Foto: Arquivo pessoal.
Quem sabe, como provoca Silva, não possamos voltar a Furtado para realmente repensar um projeto de nação independente e autônoma. Afinal, na década de 1960 ele já via como inegociável “a democracia e o projeto de desenvolvimento com distribuição de renda”. “Acredito que Celso Furtado não desistiria de propor caminhos e soluções, pois a sua convicção na possibilidade da ação planejada e no papel do Estado para corrigir essas distorções é uma das ideias que moviam seu pensamento e sua ação”, sintetiza o professor Silva, pensando o Brasil de hoje à luz de Celso Furtado.
Roberto Pereira Silva é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas e do programa de pós-graduação em economia da Universidade Federal de Alfenas. Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, também é mestre em História Econômica pelo Programa de Pós-Graduação em Economia do Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade de Campinas e doutor pelo programa de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Com a abertura dos conflitos políticos na Europa, Portugal se vê numa situação econômica, social e política difícil, com queda de receitas decorrentes da colônia e aumento dos gastos militares para fazer frente aos conflitos do velho continente. Para Furtado, o pacto colonial se rompe com a Abertura dos Portos, em 1808, e 1822 significa a ruptura política que, por sua vez, não resolve os conflitos nem do reino, nem da ex-colônia.
É autor de O jovem Celso Furtado: história, política e economia (1941–1948) (Edusc, 2011). Juntamente com Alexandre Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes, é autor do artigo Celso Furtado e a (In) dependência do Brasil. O texto integra o livro Independência do Brasil – a história que não terminou (Boitempo, 2022), organizado por Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás.
Confira a entrevista.
IHU – Qual o entendimento de Celso Furtado acerca do evento de 1822, a Independência do Brasil?
Roberto Pereira Silva – Para Celso Furtado, a Independência do Brasil é um evento fundamental, mas que deve ser compreendido em um quadro mais amplo de modificações políticas que marcaram o final do século XVIII e o início do século XIX. A ruptura com a metrópole ocorre em um quadro de crise econômica na colônia e no reino. Desde a crise da produção aurífera, e passando pela “falsa euforia” de exportação de produtos tropicais do final do XVIII, faltava ao Brasil um produto de exportação que garantiria a riqueza da metrópole.
Será preciso esperar a consolidação do Estado Nacional e a entrada do café como principal produto de exportação para encerrar a fase de transição política. Isso ocorre entre as décadas de 1830 e 1840, e agora o Estado Nacional nascente têm condições de estabelecer uma política econômica para favorecer os interesses das elites agrárias: manutenção do tráfico de escravizados até 1850, mesmo em face da pressão inglesa, política de manutenção do monopólio da terra e a reinserção no comércio internacional com as exportações de café.
IHU – O Brasil teve um processo de independência diferente de outros países latino-americanos. Em que medida esse processo distinto impactou na concepção de projetos de nação e de desenvolvimento econômico e social?
Uma das riquezas da interpretação de Celso Furtado é a comparação entre os processos de independência do Brasil e dos Estados Unidos. É esse contraponto que lhe permitiu destacar as principais peculiaridades da Independência do Brasil.
No caso brasileiro, a Independência foi feita com uma sociedade polarizada entre grandes proprietários de terras e escravos. Faltava, no Brasil, elites mercantis e manufatureiras ligadas não só ao comércio de exportação, mas também às atividades internas para fazer frente ao projeto agroexportador e escravista dessa elite. Segundo Furtado, a heterogeneidade social dos Estados Unidos foi fundamental para implementar um projeto de Nação calcado no trabalho livre, na indústria e no mercado interno, enquanto o Brasil manteve-se como nação escravista e primário-exportadora.
IHU – Muito antes de termos solidificado o conceito de globalização ou mercado global, o Brasil, desde a colônia, passando pelo Império e avançando pelas duas fases da República, sempre teve seu desenvolvimento econômico muito atrelado e dependente de mercados externos. Essa é uma das causas de nossa quase eterna (in)dependência?
Sem dúvida alguma, a dependência dos mercados externos foi uma das principais características da economia brasileira até 1930. Por isso é importante considerarmos que, para Celso Furtado, a Independência é um fenômeno exclusivamente político. Ele continua falando de economia colonial ou dependente ao longo do século XIX.
O fim da economia colonial/dependente ocorre somente com a crise de 1929 e o surgimento da industrialização baseada no trabalho livre assalariado e no mercado interno. Esses três elementos são as condições para uma economia nacional.
IHU – Como podemos compreender a formação intelectual de Celso Furtado e sua concepção sobre economia e sobre o Brasil? No que essa sua experiência de vida pode inspirar economistas e escolas de economia em tempo de uma chamada “economia de mercado”?
A formação intelectual de Celso Furtado, assim como grande parte de sua geração, se deu com o que Antônio Candido chamou de “dialética entre localismo e cosmopolitismo”. Ao mesmo tempo que Furtado atualizava-se com o que era produzido, primeiro em História, Administração e Ciências Sociais, até chegar à Economia, ele sempre contrapunha essas teorias e seus conceitos à realidade brasileira, concreta.
A concretude do Nordeste, onde nasceu, e depois da economia brasileira que ele descobriu e descortinou quando foi trabalhar na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal. Talvez a maior lição da obra de Furtado seja essa de colocar a explicação do Brasil e do subdesenvolvimento como o principal critério de verificação de qualquer teoria. Se ela não explica a realidade, é a teoria que deve ser alterada, modificada, repensada.
IHU – Ao longo de sua história, no transcorrer do século XX, Celso Furtado pensou um projeto de desenvolvimento nacional. Que projeto foi esse e em que medida foi levado adiante?
O projeto de desenvolvimento de Celso Furtado é amplo, complexo e mutável, sempre respondendo aos anseios e aos problemas da sociedade. Na década de 1950, esse projeto se apresentava como a industrialização planejada pelo Estado como forma de superar o atraso brasileiro, a heterogeneidade (o convívio de diferentes estruturas sociais e econômicas) econômica. No final da década de 1950, ele percebe que essa industrialização acentua as desigualdades regionais, e então esse projeto é repensado para recolocar o planejamento econômico a nível regional, para diminuir as desigualdades entre as regiões do Brasil, sobretudo o Nordeste.
A luta pelo Nordeste foi também um período em que sua obra incorpora, cada vez mais, a necessidade da democracia e de participação da população no projeto de desenvolvimento. É preciso que o desenvolvimento seja um anseio nacional e não uma decisão tomada na cúpula do governo.
O Golpe de 1964 modifica as esperanças de Furtado. O projeto de desenvolvimento industrial e democrático permanece no horizonte, mas as dificuldades impostas pelo regime autoritário e pela perda da soberania nacional com a expansão do capital estrangeiro e das multinacionais torna-se uma preocupação fundamental. Das reflexões sobre os fatores que impedem o desenvolvimento é que Furtado vai derivar a necessidade de retomar a autonomia nacional, a democracia, a redução das desigualdades, tudo isso acompanhado de uma valorização da cultura nacional.
IHU – Como a onda de liberalismo do final do século XX, em que uma outra concepção de Estado surgia, impactou o projeto de Celso Furtado? Aliás, são o liberalismo e o neoliberalismo os entraves para o desenvolvimento de nação tal qual pensou Furtado?
A expansão do neoliberalismo no final do século XX fez com que Furtado reforçasse ainda mais a questão da soberania e da autonomia nacional, ou seja, a necessidade de que o país recuperasse a possibilidade de dirigir e decidir o seu destino. A perda de autonomia sempre foi vista como um grande prejuízo para o Brasil. E Furtado não falava disso apenas em termos de decisões econômicas e políticas.
A perda de autonomia cultural, ou seja, a imitação dos padrões de consumo e de pensamento criados nos centros do capitalismo iam dificultando cada vez mais as formas de reflexão criativa para sair da crise econômica.
IHU – Qual a concepção de Celso Furtado acerca da indústria nacional? Como, a partir dessas suas perspectivas, podemos pensar a indústria para o Brasil no século XXI?
A indústria nacional era considerada, na década de 1950, o principal motor do desenvolvimento. Furtado nunca foi um nacionalista extremo, que não admitia o capital estrangeiro, mas, para ele, os interesses nacionais devem prevalecer sobre os interesses privados das empresas estrangeiras.
Outra questão crucial para Furtado era a dependência tecnológica. A centralidade da indústria passa necessariamente pela inovação tecnológica e a concentração do conhecimento em algumas indústrias ou países foi ampliando os entraves para o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos.
IHU – No que consistia o panfleto de 1962, “A pré-revolução brasileira”? Em que medida poderíamos atualizar essas ideias para as transformações que varrem o século XXI?
O panfleto “A pré-revolução brasileira”, um dos capítulos do livro homônimo, foi uma intervenção no debate político poucos anos antes do Golpe Militar. É um texto em que Furtado rechaça a via revolucionária chamada por ele de “marxista-leninista”, mas também qualquer projeto autoritário de direita.
Para Furtado, o que havia de inegociável na conjuntura de crise do início da década de 1960 eram a democracia e o projeto de desenvolvimento com distribuição de renda. Qualquer projeto político que negasse qualquer um ou os dois princípios deveria ser descartado pela sociedade. O texto foi muito mal interpretado pela imprensa nacional e internacional, colocando Furtado como um autor que pregava a revolução.
IHU – Se alguém lhe pedisse a indicação de apenas uma obra de Celso Furtado para ler e pensar sobre os desafios de nosso tempo, qual o senhor indicaria?
Acho que o livro “Formação econômica do Brasil” ainda é uma obra inspiradora para quem quer tomar contato com o pensamento de Furtado e, também, para se pensar os problemas do Brasil.
O livro é uma junção de teoria econômica e história, perpassa séculos de nossa história econômica e traz reflexões que ainda hoje são importantes, tais como: a importância do Estado Nacional e do Planejamento Econômico; a economia voltada para o mercado interno e a ampliação do poder de consumo; o combate às desigualdades sociais e econômicas.
Outros pontos fundamentais, também, sobretudo para os jovens estudantes de economia e ciências sociais, é o esforço de elaboração de conceitos e categorias para se pensar a realidade do Brasil e dos países atrasados. O livro é um exemplo de construção de um pensamento autônomo, livre de amarras teóricas que possam dar uma visão deturpada dos problemas do país.
IHU – O senhor também desenvolveu inúmeros trabalhos acerca do pensamento e da figura de Celso Furtado. A partir de tudo que já leu, pesquisou e ouviu sobre ele, o que imaginaria que ele poderia dizer acerca da esperança para um Brasil que viu voltar a dor da fome, do desalento e da falta de perspectiva de uma vida melhor?
Celso Furtado veria com grande desencanto e desespero a situação atual. Veria tudo isso como um retorno ao que há de mais cruel em nosso passado. A exasperação dele seria muito grande, também, pois para ele a situação atual seria fruto de decisões de política econômica.
O nível de miséria e de fome poderia ser facilmente evitado no Brasil com uma política que garantisse o fornecimento de alimentos para o mercado interno, em detrimento das exportações. As políticas redistributivas também poderiam ter sido tomadas de forma muito mais eficaz no país. Entretanto, acredito que Celso Furtado não desistiria de propor caminhos e soluções, pois a sua convicção na possibilidade da ação planejada e no papel do Estado para corrigir essas distorções é uma das ideias que moviam seu pensamento e sua ação.
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