As destituições presidenciais ocorridas em 1964 e em 2016 possuem distinções em termos de método, instrumento e velocidade. Um olhar mais cuidadoso, entretanto, é capaz de identificar nestes epifenômenos causalidades nos interesses políticos dos respectivos grupos sociais representados e contrários aos então presidentes. Este breve texto, de forma simplificadora, busca quantificar e qualificar algumas dessas causas por meio da variação real do salário mínimo, da incidência tributária e das políticas sociais distributivistas interrompidas ou restringidas.
No curto espaço de tempo da forma de governo presidencialista da gestão de João Goulart, houve a proposição das “Reformas de Base”. Nelas, estavam incluídas as seguintes reformas: agrária, bancária, fiscal, educacional, urbana e administrativa. Tais proposições alterariam com profundidade o quadro de distribuição de renda no País.
A reforma agrária previa a autorização de desapropriações, para que a terra servisse a sua função social, ampliaria os direitos do trabalhador rural e permitiria o fortalecimento sindical. Já a reforma bancária tinha o intuito de ampliar a concessão de crédito. A reforma educacional almejava a valorização da magistratura e a erradicação do analfabetismo. A reforma urbana visava a diminuir a especulação imobiliária e o déficit habitacional.
A reforma fiscal, entretanto, parcialmente implementada, possuía impactos redistributivos relevantes. Além da ampliação da alíquota máxima de imposto para a faixa de 65%, havia previsão de impostos sobre ganhos especulativos de imóveis, implementação de tributos diferenciados de acordo com o setor das empresas, estímulo à reinversão de lucros etc. Aliada a esses fatores houve uma valorização real do salário mínimo em 18,76%. Esse foi um dos fatores de instabilidade do governo Goulart, que encontrava crescente resistência dos grupos econômicos dominantes (SOUZA, 2010; MOREIRA, 2011). O governo subsequente, de Castelo Branco, reverteu rapidamente as políticas implementadas por Goulart.
Na destituição de 2016 é possível elencar semelhanças imersas às diferenças. Sabidamente, as gestões petistas tinham seu elo fundador nas políticas sociais que visavam à redução das desigualdades do País. Seja por meio da valorização real de 90,55% do salário mínimo, seja através de políticas sociais como: Minha Casa Minha Vida, Farmácia Popular, cotas sociais e étnicas nas universidades, bolsa permanência a estudantes carentes, programas de agricultura familiar, Bolsa Família etc.
Na área fiscal, o governo Lula tentou realizar uma reforma tributária no seu primeiro ano de governo. Dentre as propostas, havia a ampliação de impostos sobre doações, heranças e sobre aquisições de imóveis. Contudo, o projeto encontrou resistências no Congresso Nacional, especificamente nos grupos empresariais e conservadores (SALVADOR, 2014).
O governo Dilma acenou para a volta da tributação sobre os dividendos e para o aumento das alíquotas do imposto sobre heranças e doações, além de tentar instituir a taxação sobre grandes fortunas e retomar a CPMF. Esses acenos nunca foram encaminhados ao Congresso Nacional, motivada pela sinalização de que não seriam aprovados.
Ambos os governos conviveram com a desaprovação dos grupos sociais de renda mais elevados, não apenas por desgostarem das políticas, mas fundamentalmente porque os ganhos sociais representam a redução relativa da apropriação de renda das camadas superiores e, eventualmente, redução do lucro empresarial. O gráfico 2 explicita uma trajetória de elevação da participação dos salários no PIB a partir de 2004 e, consequentemente, uma queda do excedente operacional bruto sobre o produto no mesmo período.
A variação do salário mínimo é uma adequada proxy dos ganhos sociais. O gráfico 2 indica a concomitância dos valores salariais elevados e acentuados conflitos políticos. No governo de Castelo Branco, posterior ao golpe, a variação real do salário foi negativa. Houve queda 36,03%. No governo de Michel Temer, a variação do salário mínimo seguiu a regra previamente estabelecida, mas a reforma trabalhista implementada permite que os trabalhadores ganhem abaixo desse valor, uma vez que viabiliza uma jornada de trabalho menor do que 44 horas. Adicionalmente, a referida reforma é uma clara precarização das relações de trabalho.
Cabe destacar que ambas destituições tiveram aberto apoio de grupos empresariais, dos grandes grupos midiáticos, das federações de bancos e das agremiações ruralistas, em um termo, das elites. As políticas regressivas adotadas nos governos sem a legitimidade das urnas, mas apoiados pelas elites, demonstram a dificuldade de esses grupos conviverem com políticas distributivistas. Fenômeno mais intenso do que em países desenvolvidos, os quais possuem, em sua maioria, políticas fiscais e sociais mais redistributivistas. Além de mais conservadora, a elite brasileira parece ser mais autoritária, dispensando a democracia em momentos que seus interesses estão em jogo.
Do ponto de vista do método, é também possível identificar semelhanças imersas às diferenças. Quando o retorno do capital é ameaçado, há uma rápida articulação entre grupos empresariais, midiáticos e amplos setores da classe média, que se mobilizam com a mesma narrativa. Dessa forma, observa-se a técnica, bem-sucedida, de associar governos moderados à esquerda radical, abrindo espaço à extemporânea retórica anticomunista.
O discurso anticorrupção se presta a conquistar corações e mentes. Dessa maneira, nos termos de Santos (2017), tal método disfarça “que as prioridades dos governos usurpadores não têm sido o combate a corrupção, mas, isso sim, notável, a adoção de medidas estancando políticas favoráveis aos destituídos”.
Referências
MOREIRA, Cássio da Silva. O projeto nação do governo João Goulart: o Plano Trienal e as Reformas de Base (1961-1964). 2011. 406. Tese (Doutorado em Economia). Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
SALVADOR, Evilasio. As implicações do sistema tributário nas desigualdades de renda. 1. Ed. Brasília, 2014.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Democracia Impedida: O Brasil no Século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
Os autores agradecem as contribuições de João Batista Santos Conceição, Pedro Sofiati de Sá e Mário Lúcio Pedrosa, eximindo-os das posições aqui firmadas.
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